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Apareceu à minha porta sem avisar. Trazia um ramalhete de flores. Mas a visão não me agradou. Evocou-me antes, a memória do beijo. E de repente desejei que tanto ele como Fatinha tivessem os seus corações violentamente quebrados. Queria que Will estivesse tão miserável quanto parecia. Que se arrependesse por ter destruído a nossa união. Confesso que odiava-me sentir-me daquele jeito. Mas sentia. Era o que eu era, a minha nova entidade. E essa nova entidade, raivosa como um bicho ferido, fez-me fechar-lhe a porta na cara. Na verdade, só tinha aceite dar-lhe o meu endereço porque queria continuar perto de Érica.
– Não vou embora sem falar contigo, Linan! – os golpes na porta permaneciam altos.
Respirei fundo. Tentei abafar os meus gemidos, a angústia agressiva, os ciúmes insuportáveis. Se por um lado não me lembrava de ter experimentado tais sentimentos enquanto qawwi, na condição de humana parecia que neles naufragava.
– Sê breve – pedi num fio de voz, deixando-o entrar. Ao inalar o aroma das flores, espirrei.
– Meu Deus – admirou-se Will ao notar a reacção – São as tuas favoritas!
Para mim também era novidade. A humana em mim era alérgica a antúrios. Peguei no ramalhete e atirei no balde de lixo, sem um pingo de remorsso. Will apenas seguiu-me silencioso.
– Eu amo-te, Linan.
Operou-se uma confusão instantânea na minha mente. Voltei-me bruscamente.
– Não foi um beijo aquilo que vi entre ti e a Fatinha?
O rosto dele voltou-se para baixo.
– Sim, mas…
– Fizeste amor com ela?
O gargalo de Will inchou enquanto claramente engolia uma resposta azeda.
– Não é como estás a pensar, Linan.
-Ah não? Como podes alegar amar-me e ao mesmo tempo fazer amor com ela? Elucida-me, por favor – empurrei a mão dele. O toque não ia aclarar as ideias. Precisava de algo mais forte que isso.
– Em primeiro lugar, tu não estavas aqui!
Fiquei perplexa. Morrendo de overdose daquela ideia estapafúrdia.
– Ah! Então quando nos ausentamos, ausenta-se também o amor?
Will ficou lívido. Parecia tão incrédulo e surpreso quanto eu.
– Nunca deixei de amar-te. Tu é que me abandonaste! Trouxeste a nossa filha de volta, e de seguida sumiste. Eu vi! Deste as mãos a Vallen, de livre vontade, e evaporaste. Sem um único adeus. Dois anos. E eu sem saber se estavas morta, ou se de repente tinhas saído deste planeta. O teu telemóvel, entretanto, chamava. A secretária electrónica às vezes era de França. Outras, de Cabo Verde. Tailândia. Bora Bora. E a última vez, de Sydney. E tu nunca. Nunca deste um sinal, nunca respondeste às minhas mensagens!
– Porra Will, foi por vocês! Para proteger-te, para proteger a Érica! Eu não podia entrar em contacto pois estava a fingir ter deixado tudo para trás. Era a única forma que tinha para poder voltar para vocês.
– Para mim não foi fingimento. Despedaçaste-me por inteiro, Linan. Fatinha só chegou tão perto, porque também estava arrasada e tentava convencer-me de que ia tudo ficar bem. Ela ajudou-me a cuidar de Érica, mas não era…
– Era a minha melhor amiga. E tu a puseste no meu lugar. Foi isso.
Will calou-se. Sacudiu os ombros.
– Lamento imensamente que estejas a ver assim. Eu não estou com ela. Nunca faria isso. Queria apenas que entendesses que nos últimos meses… a minha cabeça estava em todos os lugares. Não fazes ideia!
– Tu também não! – Naquele instante os nossos corpos estavam muito próximos, mas os corações, distantes como o sol e o mar. Por isso gritavamos para que nos ouvissemos – não fazes ideia do quanto perdi para poder voltar para ti!
– Desculpa – os olhos de Will escureceram – Ao contrário de ti, sou humano. O meu corpo está sujeito a essa condição, e às vezes comete atrocidades. Mas o meu coração é e sempre foi teu.
Desejei ardentemente que nem eu, nem ele, fossemos humanos. Que soubéssemos ser unidos de corpo, alma e coração. A dissociação havia nos estilhaçado. E no reflexo dos escombros, brilhavam as nossas falhas. O coração, sem o corpo, é uma cegueira. E o corpo sem coração, é uma mutilação. Não havia metáfora possível para suavizar a realidade.
– Por favor – Will engolia as lágrimas – por favor – repetia consecutivamente – perdoa-me e deixa-me explicar.
– Escuta Will, não condeno-te por teres colocado a minha melhor amiga no meu lugar, ou por teres sido um idiota ao duvidar que eu iria cumprir a minha promessa. Tão pouco por teres esquecido que eu amava-te infinitamente. E sim, aceito as tuas desculpas.
Ele tremia quando perguntou muito baixo:
– Aceitas, mas não vais voltar para mim, é isso?
Reflecti durante alguns segundos. Ele estava correcto.
– Exacto, não vou voltar. Voltar para ti agora significaria desrespeitar os meus sentimentos. Ir contra mim mesma. Estou cansada disso e sinceramente, preciso ser mais benevolente comigo mesma.
– Algo em ti, mudou, meu amor.
– É o que acontece, Will. O universo muda constantemente.
Não tinha vontade de confessar que agora era humana. Que sacrificara os meus poderes, a minha essência, por ele. Uma força amarga e poderosa dentro de mim impedia-me disso.
– E pretendes abandonar-nos de novo? Vais teletransportar-te e sumir pelo mundo? E a nossa filha?
Suspirei. Até há pouco não me imaginava a fazer aquilo sem ele. A ser humana. Mas agora compreendia. Era uma jornada exclusivamente minha. Enfrentar os medos, a solidão, é o que faz de nós, nós. Precisava de um tempo sozinha, para entender-me comigo própria.
– Ouve-me com atenção, Will. jamais abandonarei a Érica, não tens de preocupar com isso. Mas o que quero agora é estar só.
– Percebo – Ele tentou aproximar-me, mas ao ver-me retesar, retrocedeu – ainda tenho fé no nosso casamento. Vou dar-te espaço, até que estejas pronta para perdoar-me.
– Acerca disso – rodei o anel no dedo – eu quero aquela coisa.
Ele franziu as sombras.
– Não sei se compreendo.
– Quero aquela coisa Will – retirei o anel, ao mesmo tempo que tentava desesperadamente recordar-me do termo certo – o divórcio. Eu quero o divórcio.
Wow! Por esta eu não esperava! Estou mesmo perplexa!
Ansiosa pelo próximo capítulo. Será que se irão divorciar?
Nem nós. E esperamos que não aconteça 😬