Devia ter notado, mas não notei. Como quem anda parcialmente vendado, cercado de velas que permitem o vislumbre de pedaços, mas sem claridade o suficiente para ver no todo.
O primeiro sinal de que havia algo muito errado com Will, aconteceu no dia que fui à consulta. No regresso, encontrei-o adormecido no sofá. Tirei a máscara do rosto, tomei um banho, mas ele continuou lá, serenamente adormecido. Havia um papel quase amarfanhado na sua mão. Apertava-o como quem segura um tesouro. Com cuidado, retirei-o para ler:
“Linan, quando a dor vier, teremos que arranjar outra forma. Não podemos guiar, há uma razão para…”
– Estavas a escrever-me uma carta, Will? Um poema…?
Reerguendo-se do sofá, inchaço flagrante nos olhos, dobras bem no alto da testa, respondeu com desdém:
– Poema? – e atirou um olhar perdido para o papel – não lembro.
– Não lembras? Parece que tentavas dar-me um recado…
– Droga, Linan, se disse que não me lembro é porque não lembro, devo ter adormecido, nem sei o que é isto!
Perante o meu silêncio, desbobinou a frase que já se havia tornado habitual nos últimos dias:
– Desculpa. Ando muito tenso vida, desculpa.
Os sinais foram acumulando, de forma evidente, mas mesmo assim, a verdade continuou a escapar-me das mãos. No dia do meu aniversário, por exemplo. Enquanto deliciava-me de uma fatia de bolo, Érica surgiu na sala, pálida como se estivesse doente, e puxou-me depressa pelo braço.
– Mãe… o pai está a chamar-te. Ele está muito esquisito…
Céus, que desordem. Havia ferramentas espalhadas por todo o lado da cozinha, pegadas de lama pelo chão. Ao pé da bancada, Will segurando uma grande faca, as mãos e rosto cobertos de fuligem.
– Will? O que é que se passa?
Ele pestanejou.
– Will?
Então, deixou a faca cair. Voltou a cabeça para baixo, admirado com o cenário, com o seu próprio aspecto.
– Will?
Seus olhos brilharam de pavor.
– Oh não… Linan… – tive impressão de ia chorar – preciso estar só.
– Will, vá lá…
Queria que ele se abrisse, mas acabou por fechar-se no quarto, durante um bom par de horas. Apavorado, acreditava que por causa dos repentinos ataques de pânico, dos lapsos de memória, era um perigo para nós. Quantas vezes a noite desceu, e a cabeça deste humano voou solitária para terras amargas, rondando as suas angústias, deixando-me no escuro. Vivia atordoado, em busca de certezas de que a sua mão aguentaria mais uns segundos sã, para tocar o amanhã. Não é possível dividir a vida dessa forma, vivendo com um pé no presente e outro futuro. Viver assim, é quase como ter metade do coração no ritmo, e outra metade parada. Porquê, Will?
Todavia, foi só no dia seguinte, que entendi os porquês. Após a ignição que se desencadeou dentro do meu ventre. Como não percebi antes, o que estava por vir?
– Respira, meu amor, respira – pedia-me ele, carregando-me ao colo. – Ajuda a mãe minha filha, ajeita a cabeça dela…
– Mãe…
Apelei com um gesto vago de cabeça e ela logo compreendeu.
– Ok, eu sei, vou ficar em casa, mas a orar por ti, eu amo-te… mãe!
– Estou bem, meu amor, estou bem…
Segurei-lhe a mão por um instante, antes de Will fechar a porta e acelerar o carro.
Por mais que ele tivesse se esforçado para levar-me ao hospital e manter-me salva, não foi possível manobrar nas rodas da viatura a tinta indelével que ditaria o infalível destino. O céu incendiou-se e desabou por cima de mim, como a cortina do palco que desce no último acto de um actor. Um camião sem freio decidiu atravessar e esmagar o lado esquerdo da viatura, exactamente onde eu estava, marcando assim, o minuto em que a terra debaixo dos meus pés, parou de girar.
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