Desabafo de uma qawwi

#Inédito# Partículas de Tamarino

Narrado por Lindiwe

De vez em quando é preciso recuar, parar o ponteiro, por forma a fazer o relógio seguir. É o que sempre dizia o meu  avô. Hoje, a pressão de descontinuar, desandar, voltar a sentir, não é apenas esmagadora. É real.

– Então? Se pudesses revisitar alguma época, qual escolherias? – pergunta-me Linan.

Não titubeio.

– Maputo, anos 90, alvoroço das primeiras eleições multipartidárias, minha juventude, baixa da cidade, por favor.

– Ok, Lindiwe! Dá-me o braço. De resto, sabes o que fazer.

Respiro fundo. Estou curiosa para saber se de facto, estas tais partículas de lua verde de tamarino vão funcionar em mim, mera mortal. Medo. Este não me falta. Nem sequer razões. Linan foi muito específica quanto ao mecanismo desta sua tecnologia, porém, o meu intuito é desobedecer.

Seja como for, fecho os olhos, conecto-me ao aparelho e permito que ela esfregue no meu braço o pó prateado. Num instante, mergulho no escuro. E num clic, divido-me.

Sou duas dentro de mim. Sou ontem e amanhã. Estou sólida e gasosa, tanto quanto verde e madura. A minha pele rejuvenescida, as mirabas novinhas, as lágrimas nos olhos apertados, brilham no espelho do meu quarto de outrora. Mas a minha metade, a gémea nunca nascida, que mira a outra no espelho, já traz consigo as marcas e a confiança cobrada pelos anos. Tem características de uma mulher que amadureceu.

Limpo as lágrimas. Afinal de contas, elas pertencem à outra Lindiwe, a Lindiwe jovem, dos anos 90, que chorava por tudo e por nada. Que venerava o drama doce-amargo próprio da idade.

A melancólica “end of the road” chega ao fim e o gravador dispara. Teria de me inclinar sob a cómoda empoeirada, para virar a cassete para o lado B. Mas apenas me rio. A outra metade de mim já conhece a era digital. Desaprendeu a manusear fitas de cassete.

Um telefone em madeira e metal desperta no corredor. Trim trim. Parecem ecos medonhos que querem assombar. E o sentimento de pavor repete-se, no passado, no presente. Trim trim. Como dois consecutivos golpes na alma. Trim Trim.

Abro a porta, sabendo perfeitamente o que vai acontecer: o meu pai aproxima-se do telefone e levanta o auscultador:

– Alô! Sim? Quem quer falar? Fatinha está muito ocupada, não pode vir ao telefone. Aconselho a não telefonar mais!

O telefone tomba no gancho.

Trim trim.

– Olhe menina, já não lhe avisei para parar de telefonar? A Lindiwe não pode fazer mais parte do grupo. Não, não podes falar com ela, nem por três minutos, nem por três segundos! Certíssimo!

O telefone volta a tombar no gancho.

“Pai, por favor, a Ana apenas quer despedir-se, ela vai-se embora da cidade”.

Tu não vais manter amizade com essa moça, Lindiwe! E enquanto estiveres debaixo deste tecto, terás de obedecer-me!

Teria sido assim a conversa que se seguiria entre mim e o meu pai. Mas as palavras já não existem dentro de mim. Tenho pressa, preciso mudar o rumo dos cometas. Decido não enfrentar o meu pai
e deix-o afastar-se, com o corpo pejado de fortes convicções.

As memórias queimam na minha pele. Pois que naquela noite, eu ainda não sabia que um dia seria adulta, livre. Apenas conhecia o desespero. Apenas sabia-me presa aos desígnios de ter nascido
mulher. Ainda que Pedrito fosse mais novo, era ele quem dava as ordens. Não podia passear se ao mano mais novo não apetecesse acompanhar-me. Naquela altura eu era tida por um animal indomesticado, por gostar tanto de cuba libre, de sair com as amigas e de amanhecer a dançar.

O meu braço comicha, o efeito das partículas de tamarino está a terminar e o meu tempo de viagem a esgotar-se. O peito se me dilata.  Espreito pela janela do quarto. Lá está, o menino da barraca! Continua naquela praça, vendendo sonhos, amendoins e matoritori, entre as luzes intermitentes, no pulsar da noite que parece estar somente a acordar. Era sempre assim, especialmente às Sextas, quando o “tumbai” jorrava das colunas do minigolfe e sacudia as saias das moças que trepavam grades para irem às escondidas, abanar os corpos na famigerada boate.

O meu coração bate mais depressa. Não tarda para Inilda, Ana e Matilde estacionarem. Naquela noite, naquele exacto minuto, a outra Lindiwe estaria a vestir as suas boca de sino verdes, os
tacões favoritos, pintando os lábios de vermelho e metendo uns quantos quilos de audácia na bolsa, para mais uma aventura com as amigas. Não desta vez.

Ouço a buzina prolongada e reconheço o código.

Com o medo a escorrer-me pelos dedos da alma, avento-me no ar gelado e apresso-me ao carro. Ao contrário do que fiz no passado, detenho-me somente à janela.

– Meninas, devem todas voltar para casa, agora mesmo!

– Mas Lindiwe…

– É importante, Ana! Se formos à festa… uma de nós vai, vai…o resto da locução perde-se no vácuo dos meus próprios múrmuros.

Pasma, a minha amiga de outrora desce do carro.

– Isso tudo é por causa dos teus cotas? É a minha despedida, sabes que tão depressa não volto para Maputo, não sabes?

Ana não fazia a remota ideia. Nem poderia.

– É por querer ver-te bem, minha amiga! Tudo vai…

Não consigo completar a frase, pois o mundo esvanece numa neblina fresca, a medida em que os carros, o luar e a alegre cidade desaparecem num rodopio para dentro do impiedoso tempo. Os ponteiros seguem. Sonoros tic tac, tic tac, anunciando o meu presente. As pálpebras pesam quando abro os olhos. A minha blusa cola-se-me ao peito de tão encharcada. Pouco reconheço ao meu redor. Somente ela, Linan.

– Onde estamos?

– É a tua casa, Lindiwe. Como é que foi a viagem?

Percorro atabalhoadamente tudo em que esbarro, até encontrar um telemóvel. O meu.

– Linan! – balbucio vasculhando a vasta lista de contactos – acho que consegui! – já ouço o longínquo toque conectando o número de Ana. A voz do outro lado, que quase nada mudou nos últimos anos, confirma-me o impossível. Arranca-me sem freio uma lágrima.

– Ela está viva, Linan – anuncio – A Ana vive! O acidente não aconteceu! O meu passado é outro!

– Hey, calma ai – Linan parece estarrecida – eu disse-te para teres cuidado. Não é assim que as partículas funcionam… elas…

– Shiu, Linan! – enfio-me depressa num casacão grande – está tudo perfeito! Sou-te tão grata! Vamos sair, para comemorar?

Source Image: DigitalArtInspiration

Desabafo de uma qawwi

#37 | De volta ao começo (última parte)

– Teste, um, dois – repito.

Primo o botão, a pontinha de luz vermelha do gravador cede.

– Tão rudimentar… achas que vai funcionar, Linan?

– Confio que sim, deste-lhe um jeito, tem de funcionar.

Volto a clicar o botão e ouço a minha voz repercutir pelo aparelho. Avanço com a gravação, deixando registada a mensagem:

Olá. O meu nome é Linan. Se este aparelho e o meu diário foram parar às suas mãos, significa que de alguma forma, perdi-me do meu caminho. Por favor, ajude-me a reencontrar-me. Tudo o que você vai ler é real. Foi o meu dia a dia, durante a passagem por esta terra. Poderia ter sido uma visita breve, não fosse a mutação, os vícios do corpo e da alma de humana, alongarem a jornada.

Deixe-me esclarecer: sou do reino de Stefanotis, que orbita numa dimensão distante desta. Tenho a pele trigueira, cabelo negro como o carvão vivo, que favorece os meus olhos azuis florescentes. Pareço bastante com você, ou seja, tenho o aspecto de um humano. Se estivermos no mesmo mundo, e caso esbarre comigo, ajude-me. Quem sabe você veja as coisas com mais clareza do que eu fui capaz. E caso me encontre, acorde-me, faça-me recordar. Disso depende, muito provavelmente, a esperança de toda a humanidade. Obrigada.

Vallen olha para mim, e num gesto inesperado, dá-me a mão. Afinal, só temo-nos um ao outro. E os inimigos também se abraçam.

– Será que vai ser doloroso?

– Espero que não.

Esfregamos as particulas de tamarino nos nossos pulsos. Pensamos no começo. Soltamo-nos da terra.

Mas a terra, no seu vazio, torna-se mais negra que o luto do meu peito. Isto não é o meu planeta. Mas também não é a terra.

– Acorda Linan!

Estou acordada. Mas não sei o que vejo ao redor, estas telas, estas velozes estrelas.

– Passaste da conta – continua a mesma voz, assustadoramente familiar.

Estico-me. E deparo-me comigo mesma. Sou ambas.

– Sim, eu sou tu. Deixa-me reorientar-te para que te reencontres Linan… tens de regressar.

– Um minuto – a minha mão trava-se no acelerado teclado flutuante  – avancei? Avancei quanto tempo?

– Pelo menos um ano, Linan.

A minha mente guina com a mesma força de um meteorito, à medida que o resultado matemático desliza da minha boca, arrancando-me da suspensão. Aterro em frente à uma das telas.

– Um ano? Significa… oh! 30 anos do planeta terra?

– Precisamente.

– A esta altura, estarei atrasada?

– A esta altura já quase nada sobra.

Engulo em seco.

– Posso?

– O quê?

– Ver o que resta?

Ela observa furtivamente as telas.

– Compreendes, Linan, que tens de reorientar-te dentro desta janela, se não corres perigo de vida?

– Compreendo, mas preciso saber.

Deixo os meus dedos manejarem freneticamente o ecrã de uma das telas. Os meus olhos inundam-se de lágrimas, da força impetuosa que brota do meu peito ao ver a terra. A satisfação é tanta que o sorriso transfigura-se num desproporcional esgar.

– Eles venceram!

Os humanos. Estão felizes. Não há nuvens escuras pelos ares. Os mares são azuis como o céu. Eles se abraçam, sem discriminação. Todos eles. Descobriram que o amor não é só uma palavra, ou um sentimento. Descobriram que há uma razão para ele existir. Finalmente, os qlubs estão equilibrados! A minha outra eu aproxima-se, com as mãos escondias por detrás das costas, sugerindo que algo está a escapar-me.

-Lembras-te quando Vallen disse, Linan? Que existem duas variáveis? Pois, ele estava certo. Esta variável foi salva por antecipação. 30 anos atrás. Na dor, expostos diante das suas próprias fracturas, os seres humanos transformaram-se para melhor.

– Então porque é que disseste que não sobrou nada?

A tristeza que emana dela, estranhamente, é minha.

– Olha com atenção.

Ela desliza o dedo na tela, para que eu veja o que até então me estava a passar. Não são precisos mais de cinco minutos para que uma onda de terror atinja-me em cheio.

– O que é isto?

– Planeta Terra.

– Mas… parecem frívolos ikras?

– Esta é a dimensão de que Vallen falava.

– Como assim?

– Numa outra versão de si próprios, os humanos não aprenderam nada. Trinta anos atrás, perderam a oportunidade. Seus conceitos bélicos, egocêntricos e separatistas foram exacerbados. E isto abriu as portas para o que Kosi queria, o pior cenário… que é…

– Não digas mais – murmuro. É como se acabasse de receber uma bofetada.

De que lado a minha família ficou? Do lado dos humanos que havia aprendido, ou do lado dos que tão somente havia piorado?

– Reorienta-me, por favor, de volta ao começo!

– Estás preparada? Para começar do zero? Toda esta conversa, tudo o que viveste…

– Estou pronta.

– Ok. Então… até um dia.

Desabafo de uma qawwi

#36 | De volta ao começo: duas dimensões

Sempre soube que haveria um preço alto, e uma consequência, pela escolha que fiz. A cobrança chegou. Os meus bolsos, porém, quedam-se vazios. Não sou capaz de pagar.

Para esta terra, Will está morto. Onde ficam os discursos, sobre a morte não ser definitiva, sobre a possibilidade de ele estar a ir, neste exacto momento, ao meu planeta? Arrastam-se aos confins da minha dor. Aceitar que Will está a fazer a transição, implicaria dar por terminado o nosso amor. Como posso fazê-lo, se ainda o amo? Como aceitar que os humanos vivem tão pouco, quando eu quero continuar a estar com ele?

– Tens de te concentrar, Linan, não sejas egoísta! Ele está a atravessar…

Viro-me com brusquidão, como se tivessem disparado gases lacrimogéneos com o efeito oposto, deixando-me agitada. Aquela voz e figura que surgem no escuro, que dissipa a multidão, ignora e sempre ignorará o que eu sou, o que eu me tornei.

– Não sabes do que falas, Vallen! E se ele estiver a ser levado por rapadores…? – as frases saem-me pela metade, entrecortadas à lamina do meu frio e magoado coração.

– Achas que o teu queridinho é o tipo de humano que não será encontrado por um vigilante, Linan? – ele segura-me firme pelos punhos, e de seguida estica a mão, para mostrar-me um saco com conteúdo familiar, muito brilhante. O meu peito comprime, a testa pinga, e sinto a venda cair dos meus olhos.

– Usaste as partículas de tamarino com Will!

Os lapsos de memórias. A variação do seu humor. Agora compreendo. Will sabia o que ia acontecer. Protegera-me. Como ousara abandonar-me, sozinha, no seu planeta?

– Retribui esse sacrifíci,o Linan – a voz de Vallen parece distante – salva este povo, regressa comigo.

– Regressar? De que falas?

– A única forma de salvá-lo, é cumprires a tua missão. E tu falhaste. Ambos falhamos. Caímos na dimensão errada. Esta não é a terra de Selénio. Existem duas dimensões, e esta dimensão Linan…

Duas dimensões? Inúmeras hipóteses brotam na minha cabeça, mas este fracasso gigante, esta perda estrondosa, formam um quadro horripilante, uma competição de desastres com as quais não consigo lidar.

– Rei Selénio nunca falou de…

– Lembra-te bem de quem és, Linan!

“Trago uma humana dentro de mim, Vallen, que passou a amar estas pessoas, não suporto ter que perdê-las, não posso!” teria dito, não estivessem as palavras entaladas.

– E é por isso que vais comigo – prossegue Vallen. – Regressa comigo até o princípio.

Finalmente reajo:

– O que queres dizer com princípio?

– Antes da queda.

– Antes da… queda? – repito. O meu sangue congela. Fazer uma viagem tão longa no espaço temporal tem sérios impactos. Tão sérios que não me sinto capaz de arcá-los.

– Não me peças isso.

Anular tudo? Arriscar-me a esquecer-me por completo? Perder-me no oblívio? Como posso esquecer-me que um dia tornei-me humana? Que gerava um ser dentro de mim, o qual já era amado? Como posso renegar o amor por eles, pelos meus amigos, por esta terra? Se não podia estar com Will, queria pelo menos contentar-me com as memórias. Estes humanos são sagrados moradores do meu coração, como posso, simplesmente, apagá-los? Não existe um só momento que valha a pena ser anulado, nenhum.

– Não há outra forma, Linan. Tens de voltar e focar-te na tua missão, sem distracções. Quem sabe, assim, se fores bem sucedida, os voltes a ver.

– Mas se anular tudo…

– É melhor assim. Foste tocada pelo seu amor e eles pelo teu. Ainda que se esqueçam. É uma marca que vai ficar, e essa é a tua única hipótese. Vamos Linan. Tens de recomeçar e encontrar um homem chamado Jorge Montani, no Brasil, antes que seja tarde.

– De que lado estás, afinal?

– Vais saber, quando tudo terminar.

Respiro fundo, enxugo os olhos molhados.

– Ok. Mas antes de partirmos, ajuda-me a encontrar um… como eles chamam? Um gravador! Ajuda-me, Vallen, preciso de um gravador!

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Desabafo de uma qawwi

#35| De volta ao começo: o nosso último abraço

Por Will

É aniversário da minha mulher. Celebro-o como se fosse meu também. Afinal de contas, sinto-me renascido. Aprendi a conviver com os meus medos e esta noite deixei-os todos bem enterrados, no sótão da alma. Um pouco de felicidade não vai fazer-me esquecer as responsabilidades que me esperam. Trampa, destino, eu sei lá.

– O que é se passa, Will? Estás diferente… – confidencia Linan, enquanto dançávamos à média luz das velas espalhadas pela sala.

– Amo-te, Linan. Não posso imaginar a minha vida sem ti. E é só.

No dia seguinte, quando ela começou a passar mal, não me atrevi a mexer no carro. Liguei antes para um táxi. Tinha tudo planeado. Ou quase tudo.

– Respira, meu amor, respira…

Durante a trajectória, senti o meu rosto e o corpo, quentes. Haveria alguma esperança para nós? Se sim, ela parecia soltar-se pela janela, deixando-me num frio abandono. Tive medo. Mas não podia esconder-me. Era quase impossível disfarçar as lágrimas que subiam pelos olhos. Agarrei-me a ela. O futuro do qual Vallen tanto alertou-me, vinha a galope. Só havia uma forma de alterá-lo. Agora compreendi. Venceria a promessa, sim, mas para isso…

O farol do camião deu-nos um banho de luz, e joguei-me por cima da mulher que amo, amparando-a com o meu corpo. Merecíamos um último abraço.

Desabafo de uma qawwi

#33 | De volta ao começo: vamos abrandar

Woman meditating

Imagem: Zeenedout

Vamos humano, desacelere o passo. Não é imperativo manter-se em pé, quando as pernas querem fraquejar. De outra forma, por quê haveria tanto medo? Há muitas horas no dia, para organizar a aula online das crianças, tratar as tarefas domésticas, partilhar a foto do pão caseiro no Instagram, e executar aqueles vinte burpees de modo a manter o físico.

Sim… há muito por fazer. E o muito será feito. Mas às vezes é importante não fazer nada. Sente-se aqui comigo, diante das estrelas. Podemos ser os dois, perfeitamente incapazes, diante destas águas? Não, não há nada de errado nisso. Em deixar-se apenas flutuar. Respirar, sem tencionar nada além. Meditar, sem pretensões de atingir o nirvana. Há que deixar-se ser atropelado por esta frente de emoções, sem protestar. Apenas sobrevivendo, tão simplesmente, sobrevivendo.

Afinal de contas, nenhum humano quer morrer, não é verdade? Mas de nada vale lavar tantas vezes as mãos, se não lavar e tirar os vírus da alma (e acreditem, haverá um dia em que as almas vão durar). Que se evaporem todos os egoísmos e exclusões, e se conjuguem todos os verbos e sinónimos do bem-querer.

– Mãe…! Oh, mãe…! Depois da morte, para onde vamos? Fazemos mesmo a transição para a tua casa, reino Stefanotis?

Pronto. Eis um pensamento que não me apetece ruminar esta noite. Will, todo sorumbático, lança-nos um olhar curioso e ajeita a régua sobre a planta, observando-me lidar com os questionamentos da filha.

– Não vais morrer, meu anjo, não tens de pensar nisso.

Érica franze os lábios. A frustração prevalece no seu terno olhar.

– Então até quando ficaremos fechados aqui dentro? Tenho saudades da escola, dos meus amigos.

Pobre Érica. Humanos não são humanos, sem outros humanos.

Não acreditem muito nas promessas de que o vosso planeta vai mudar. Já vos conheço tempo o suficiente para saber isso. Todavia, algumas coisas serão diferentes. O conceito de fronteiras resistirá, embora vocês passem a perceber que na verdade, elas não existem. Assistirei a minha filha ir ao cinema com os amigos, pelas plataformas da internet. E quando tudo isto passar, os seres humanos terão descoberto outras formas de amar. Mais do que hoje são capazes. E para que perpetue na consciência esta dura marca, será instituído um feriado, um dia por ano, para as pessoas ficarem em casa, reconectadas com o Universo.

– Não é só por ti que tens que ficar em casa, meu amor. É pelos teus amigos também, de quem tanto gostas. E olha que nem todos os seres humanos têm essa possibilidade. Há pessoas que tem que ir à rua, para cuidar das outras. Há quem tem que ir à rua, para poder sobreviver. Temos que ser responsáveis, pensar nessas pessoas, pensar em ajudarmo-nos e cuidarmo-nos, sempre. Vai lá ao WhatsApp, liga aos teus amigos, diz-lhes que tens saudades. Eles vão gostar de saber.

Os olhos dela cintilam, enquanto mete os auriculares aos ouvidos e agarra-se ao telemóvel.

– Ok, mamã.

Ah, minha pequena humana. Que nunca te esqueças, nunca desaprendas, a tocar as cordas destes grandes instrumentos musicais. A solidariedade e a amizade, universais em qualquer trilha da vida.

Will finalmente pousa as plantas e a régua, arrastando-se de seguida para o quarto. Está derrotado. Este ser humano não sabe abrandar. São muito afiadas as garras da angústia que cravaram a sua pele. As propinas da Érica, os deadlines da empresa, a dispensa vazia, os cuidados para não contaminar ninguém depois que volta da rua, a minha gravidez de risco, a falta de ciência sobre o assunto, o medo de perder a família. Will mergulhou, enfim, em profundo estado de ansiedade. O que eu devia ter percebido, porém, é que o seu ar abatido devia-se à outra coisa. O elemento que o atormentava era bem mais elevado do que a simples ansiedade. Era algo assustadoramente extraordinário, frio como a solidão. Apavorante, para dizer a verdade.

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#32|O equilíbrio quebradiço da vida

Sinto um gosto horrível na boca. Perdura no meu paladar desde ontem, o dia em que que soube estar a gerar-se dentro de mim uma vida nova. O sabor amargo ampliou esta manhã. Saía eu da casa de uma aluna, quando vi um menino. Devia ter treze, catorze anos, no máximo. Atirado nas escadas escuras do prédio, isolado, tentava esconder as lágrimas. Os seus olhinhos estreitos mexiam-se acanhados ao ritmo do medo. À medida que os seus ombros agitavam-se sobre o seu corpo em soluços, penetrava este azedume na minha boca. Qualquer um podia ouvir os gritos horripilantes da flat do rés do chão. Os pais do menino agrediam-se verbalmente. E qual força maior para agredir um coração, senão aquela? O menino não tinha uma casa. Tinha um inferno. Como podem, dois seres humanos, trazer uma criança ao mundo para a torturarem daquela forma?

Aquilo tudo forçou-me a voltar a questionar o significado de ser mãe, de ser pai. Talvez pela minha origem distante, pela minha inegável condição de aliegena, eu jamais compreenda, e por consequência, nunca me sentirei preparada para acolher esta semente que brotou em mim. Não neste mundo em particular. E quando nascer, o que vai ser ele? ou ela? Um humano? Um qawwi? Uma criatura híbrida e perdida? A ideia causa-me uma incontrolável pontada no peito. Seja qual for a sua natureza, esta criança já é um pedaço de mim, pedaço que deverei entregar às garras deste planeta tão maltrado, tão dominado de sombras e tão necessitado de ajuda. É justo para a criança? Ou para o próprio planeta? Provavelmente não exista uma resposta clara e julgo que seja pouco óbvio para os próprios humanos. É errado duvidar? Afinal de contas, ser pai acarreta decisões que não se devem impor. Significa abdicar de quaisquer modos egoístas e dedicar toda a energia ao filho, pelo resto dos dias. Significa ficar falido, se preciso for, pela educação dos ditos cujos. Em última análise, significa dar a vida, se for isso que custa. Sou absolutamente livre de o querer… ou não.

Pese embora tenha feito a decisão, o conflito dentro de mim não cessa.

A médica disse-me que devo ter cuidado. Chamou o meu estado de “gravidez de risco”. Pelo que entendi, pode estar em perigo a vida do bebé, ou a minha. Quando é que eu poderia imaginar um fenómeno assim? O corpo degradando-se e sofrendo de tal forma, que enfrenta o risco do apagão? Ode às mulheres humanas, por saberem viver neste equiílibrio quebradiço da vida.

O risco de eu vir a desaparecer deste corpo e desta terra após o nascimento do meu filho, não me assusta. Sei melhor do que ninguém, que a morte é uma das formas de eu voltar ao meu planeta. E o fim do ser humano, é regressar às origens. Aliás, este é um dos pontos cruciais da minha missão.

Porém, de olhos bem vendados, de mente humana que ainda não se abriu para conhecer a sua verdadeira origem, Will não é capaz de compreender quando digo que vai tudo correr bem. Que a morte não é definitiva. Para Will, a ideia do futuro incerto encheu o nosso redor de sombras, de problemas. A dúvida adoeceu-lhe a alma. E quando o espírito adoece assim, vai-se a sanidade da mente. Wil começou a perder o juízo. Pelo menos foi isso que à princípio, pareceu.

Desabafo de uma qawwi

#31|Milagre a dois

No planeta dos seres humanos há várias teorias sobre os pesadelos. Esta espécie de delírio que penetra o nosso subconsciente durante o sono, arrancando-nos graves suspiros de medo. Há quem diga que os pesadelos evoluíram para tornar os humanos mais alerta sobre possíveis ameaças. Outros, que este tipo de alucinação não passa de uma reacção a algum estímulo exterior. É um fenómeno, que, enfim, extravasa todas estas tentativas de entendimento. Mas o que descobri, recentemente, parece incontestável: de alguma forma, os pesadelos preparam-nos para o futuro.

Naquela noite, Will levantou-se com o coração descompassado, o peito molhado e os dentes apertados de tanto pânico. As estrelas pareciam derreter nos seus olhos aflitos. Amparei-o, tentando acamá-lo.

– Will? Tiveste um pesadelo?

– Acho que sim, não lembro… abraça-me, Linan – pediu depressa, buscando conforto no meu corpo, querendo-me com o desejo de um alcoólatra que procura o seu alento numa garrafa.

Sim, tivera um pesadelo. Mas qual era o alerta que o seu instinto tentava activar?

Beijei-o até o alvorecer. Normalmente o beijo conseguia sarar onde mais doía. E disso era feita a nossa rotina diária, após aquele tempo todo separados. Quando um estivesse em apuros e não pudesse chegar lá, o outro carregava. Nem que fosse nas costas mancas e nuas. Compreensão, e sobretudo, cumplicidade. Era o que precisávamos. E éramos felizes, mesmo quando surgissem pedras. Só que um dia tropeçamos. Afinal, o que era certeza, também sabia ser angústia, construindo por fim o início da queda.

– Deve ser uma comida que não caiu bem, ou estás doente outra vez – constatou Will preocupado, ao ver-me vomitar já pela segunda vez naquela semana. Não quis ao ir médico. O meu gigante apetite andava ampliado, por isso julguei que fosse apenas uma indigestão. Mas as náuseas repetiram-se. Quando veio o torpor, a sensação do estômago queimado e por fim o sangue escuro vertendo de dentro de mim, aceitei ir ao hospital.

Alguns exames terráqueos depois, tive o diagnóstico. Nunca, em hipótese alguma, havíamos previsto a notícia:

– A senhorita está grávida. E vai precisar de alguns cuidados… – avançou a doutora, sem pudores.

É assim meus amigos, sabem que muitas vezes perdi-me, durante esta aprendizagem, de ser humana. Nunca como naquele instante. Deixei de ouvir a médica. Apertei a mão de Will, como se o gesto fosse tapar o abismo que se abria entre nós, deixando espreitar segredos e temores que se empilhavam à superfície, ameaçando rebentar as amarras que uniam a nossa confiança.

– Tem a certeza, doutora? – a voz de Will estava por um fio.

– Sem sombra de dúvidas. Já conta com dois meses.

A elucidação da médica arrepiou-me. Não havia preparo para aquilo. Eu não queria ser mãe, nem pensar. Não num mundo que tenho por certo estar à beira do fim.

Por outro lado, percebi que a alma de Will havia ficado engasgada. Como se, de repente, um cavalo se atrelasse às suas costas. Não sabia se era um milagre ou uma maldição. Se se permitia vibrar ou se procurava perdão para o assassino dentro de si, sequioso de cortar-me em duas. De dividir-me em qawwi e em humana. Pois quem sabe assim, encontrasse alguma explicação plausível para o que acabava de ouvir.

– Linan – voltou a falar quando já estávamos em casa. Custava-lhe. Como se um frio severo, desses que seca o sangue, congelasse os seus lábios – Sabes que… eu não posso ter filhos, é impossível. Será que – outra sustenida pausa – será que – e mais outra – é por seres qawwi, é pelo teu corpo, os teus poderes… é isso?

A resposta que borbulhava na minha boca preocupava-me até aos fios do cabelo.

– O meu corpo tornou-se humano. Sou uma pessoal normal como tu, Will, não tenho poderes nenhuns. Nem sei o que pensar.

O pulsar da notícia, a ausência de uma resposta, ganhou força nos contornos do rosto de Will. A pergunta continuou gritando, em silêncio. Poderia ser o derradeiro milagre? Ou a dúvida ia começar a penetrar por caminhos que julgávamos outrora veemente fechados?

Desabafo de uma qawwi

#2# O Hotel

 

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Estou sentada à beira da passagem. Observo. Tento compreender. Outrossim, não tenho para onde ir. Esta cidade é repleta de luzes artificiais. Painéis desnecessários. Reclames e sinais hediondos. Obsoletos por todos os cantos. Sistematizada e paralelamente desorganizada. Existem, por exemplo, casas ordenadas por categorias. Umas onde apenas se come. Outras, dedicadas exclusivamente à poluição sonora.

O edifício diante de mim, entretanto, enche-me de fascinação. Chama-se “Hotel”.

Segundo pude entender, a casa hotel oferece guarida a quem não tem onde dormir. Criaturas azaradas como eu, que se aventuraram pelo universo sem o mínimo de preparo.

Estou neste banco há pelo menos dois dias. Já começo a sentir frio. Nós qawwis geralmente não temos necessidade de dormir. Mas a viagem de Stefanotis até ao planeta terra, consumiu tanta energia, que neste momento não me vejo a fazer outra coisa se não repousar um bocado, num lugar quente e coberto. Isso ajudaria a preparar-me melhor para a minha missão.

Posto isto, o hotel é de facto uma invenção genial. Não faria muito sentido no meu planeta, onde dormimos somente por diversão, em lugares bem diferentes dos que aqui se configuram.

Tento entrar no hotel, mas acabo enxotada. Dizem que não recebem mendigos (ainda estou a tentar perceber o que isso significa). Que sem dinheiro, não posso ter lá guarida.

Dinheiro…

Volto para o banco. O meu estômago dói horrores. A ponto de deixar-me impossibilitada de utilizar os meus poderes de travessia. Naquela manhã havia comido algumas rosas e cravos, mas estou novamente com fome. Mais a mais, as comidas espalhadas pelas ruas, não só tem um aspecto intragável, como não estão disponíveis. Não são oferta da natureza. Se no meu planeta basta-me “accionar” para poder comer o que bem quiser, nesta terra tenho de “pagar”.

Está visto. Este planeta gira em torno do famoso dinheiro. Se ao menos eu soubesse como ele é, ou onde ir buscá-lo…

– Senhor! – levanto-me às pressas para abordar o homem que atravessa a rua.

Ele olha-me com desconfiança.

– Senhor… – murmuro com alguma cautela – procuro a fonte do dinheiro. Pode dizer-me qual é a mais próxima?

A desconfiança dele dá lugar a um sorriso incompreensível.

– E quem é que não procura, meu amor? Mas para começar, você podia sair das ruas e ir trabalhar, não é verdade? É linda e jovem demais para perder-se nestas coisas.

– Quais coisas?

O homem não me ouve. Embrenha-se na rua e prossegue a caminhada.

– Estás com graves problemas moça – murmura uma humana que acaba de aproximar-se. Conheço-a. Tem estado sentada numa tenda de metal e papelão, exibindo pelo chão objectos que eu nunca vi na vida. Desenrola a ponta do tecido na cintura que lhe cobre até os pés, e do tecido retira um pedaço de papel.

– Consegui vender umas bijus hoje. Toma. Compra pão e vai para casa. Não fiques na rua.

Recebo o papel, viro-o de cima para baixo. Repito o movimento.

– O que é isto?

– Dinheiro que sobra para apanhares chapa.

– Dinheiro é isto?? – Imaginei todas as possibilidades, menos aquela – Quanto deste papel é necessário para eu poder dormir ali? – aponto para o vasto edifício.

– Naquele hotel? Moça… com esses trapos? – ela abana a cabeça como se combalida – bem bem, terias de multiplicar essa nota por pelo menos mais cem.

– Multiplicar? – permaneço na dúvida – É só isso?

Massinguita, juro! Dinheiro não cai do céu, mãe, vai para casa!

Estas jovens pa! Tão bonitas e tão drogadas” – pensa a humana voltando à sua tenda. Como qawwi, tenho a habilidade de ler o pensamento dos humanos. Entretanto, o conselho da senhora parece fácil de executar. “Multiplicar”.

Aperto o dinheiro na mão, procuro um lugar isolado, e em pouco tempo reproduzo uns tantos papéis. Volto a observar o hotel. Decido que é melhor estar vestida como os humanos que estão a aventurar-se a lá entrar. Apresso-me a uma casa de vestuário. Há várias naquela rua.

– Quantos papéis você quer para deixar-me levar esta roupa? – pergunto atirando no balcão várias notas, apontando para a primeira peça que vi na vitrine. A humana do outro lado do balcão lança-me um olhar fixo e demorado.

– O conjunto custa sete mil.

Depois de me estrear no mundo da “compra”, troco de roupa e tento novamente entrar no hotel. Para o meu espanto, não sou escorraçada. Parece magia. Os humanos recebem-me com simpatia.

É assim, nestas circunstâncias, que descubro o significado do termo “pessoa”. Vem de persona. Ou seja, máscara. O humano veste várias personas e se molda às circunstâncias. O humano dissimula a sua real natureza. E o faz muito bem. Enquanto eu estava vestida de origami rasgado, sem dinheiro, recebia maus tratos e era indigna de entrar no hotel. Depois de ter colocado uma máscara, uma nova roupa, e ter mostrado uma realidade que não é minha, fui aceite. Louvor à ilusão. Para mim, é um grande absurdo!

No quarto do hotel, consigo finalmente repousar e organizar as ideias.

Dissimular. Disfarçar. Arranjar uma persona. É com isso que sonho durante o descanso.

Ao acordar, já tenha traçado um plano perfeito. Precisava tornar-me um deles. Misturar-me no meio dos humanos. Caso o contrário, colocaria em risco a minha missão. Todavia, arranjar um disfarce humano, ainda que temporário, tinha os seus prós e contras. A vantagem seria passar despercebida, protegendo a minha identidade. O problema, entretanto, é que não teria controle sobre esse processo. A troca de corpos é altamente contingente. Leva-nos a lugares desconhecidos. Sem mencionar o facto de que, enquanto eu estivesse num corpo alheio, o corpo original ficaria momentaneamente suspenso, noutra dimensão.

– Que seja – digo comigo mesma.

Respiro fundo. Pela minha missão, tudo vale a pena.

Fecho os olhos.

Estrelas cobrem-me como um manto de penas. Elas transportam-me para um corpo humano. Amanhã, estarei noutro destino, a experimentar a vida de um humano, algures no planeta terra. Que a sorte me acompanhasse.

Desabafo de uma qawwi

#30|Seria a malária de uma cruz, o amor febril sob um céu azul?

A malária é uma doença infecciosa, transmitida por mosquitos e causada por protozoários transmitidos pela fêmea infectada por plasmódio. O período de incubação da malária varia de acordo com a espécie de plasmódio e qualquer humano pode contrai-la. Os sintomas mais comuns da malária são a febre, calafrios, fadiga, vómitos, náuseas e dores de cabeça. Em casos graves pode causar convulsões, coma ou morte. Entre as principais medidas de prevenção individual da malária estão o uso de mosquiteiros, roupas que protejam pernas e braços, telas em portas e janelas e uso de repelentes. É muito importante, assim que diagnosticado, tratar a doença.

Oxalá eu tivesse sabido toda esta informação há algumas semanas, antes da minha última viagem. Achava que o meu corpo não pudesse sofrer nada além de uma “dorzinha de cabeça”. Mas podia.

Passei a tarde inteira sem apetite. A moleza a roer os ossos é a sensação mais estranha que já tive em toda a minha vida. É oficial: pela primeira vez, estou doente.

– Tens que ir ao hospital – adverte Érica que está a passar uma temporada comigo – meu Deus – assustada, retira a mão da minha testa, como se tivesse levado um esticão – vou ligar para o pai.

– Filha, nem pensar.

A minha cabeça turva-se de pensamentos tumultuosos. Embora esteja perplexa com os acontecimentos no meu corpo, não quero incomodar Will. Mas o estômago desafia-me. E todas as minhas caras ilusões, de ser autossuficiente e aguentar-me só, como uma valsa despojada de orquestra, começam a dissipar-se debaixo dos calafrios que congelam-me a pele. Érica parece estar certa. Talvez seja melhor ir ao hospital. Penso em chamar um táxi, mas quem tomaria conta da menina? Em quem confiar? Incapaz de fazer mais equações, agarro-me ao que resta de lucidez e faço a tão temida chamada.

Estou?

– Will, podes vir à minha casa, por favor?

Capto uma espécie de impaciência na sua voz.

– Agora? – e depressa acrescenta – Passa-se algo com a Érica…?

– Nao, Will, sou eu. Acho que não estou muito bem.

Dou por mim no meio da neve de Russia. Mas depois lembro-me que já não sou do tipo que se teletransporta. Russia é o meu próprio corpo.

– Talvez precise de ir ao hospital. – digo com urgência.

Sinto uma respiração pesada e hesitante do outro lado da linha.

– Certo. Estarei aí em dez minutos. Quinze no máximo. Até já.

A verdade é que não me lembro de como ele chegou. Tenho a vaga ideia de ver Érica abrir uma porta, ter estado numa clínica, e finalmente, debruçada sobre um lavatório todo vomitado.

Abro os olhos no leito da cama. Toalhas húmidas e carteiras de medicamentos quedam-se pela cabeceira. Um sobretudo escuro espreita pelo braço da poltrona e uma voz familiar atravessa a porta fechada.

Lamento imenso. Posso ter outra chance? Sim, eu sei. Acabei perdendo o voo, mas deveu-se a uma emergência. A minha esposa está doente, tive que cancelar a viagem. Sim, sim… claro, engenheiro, é bastante razoável. Agradeço eu pela compreensão. Grato e até breve.

Alguns minutos depois, a porta afasta-se num chiar, revelando a figura de Will. Envergonho-me por sentir-me tão parvamente aliviada.

Ele senta-se à borda da cama, e ao ver o meu hermético trejeito, faz-me um carinho no rosto.

– Malária de uma cruz não é brincadeira, meu anjo. Mas já, já estás melhor.

– Ias viajar Will?

Ele sorri apologeticamente, continuando a carícia.

– Não te preocupes com isso, já remarquei, está tudo tratado.

– Oh Wilson…

Claro que preocupava-me. E desejo escapar desta minha ineficiência. Ressinto-me da ausência de tenacidade da carne humana, consome-me um estrepitoso embaraço.

– Lamento que tenha prejudicado os teus planos Will, não imaginei.

– Não lamentes – ele faz com que a sua mão deslize pelo meu cabelo, com o vagar e a harmonia da água de chuva, que corre simétrica entre os dedos – Tu e a Érica são muito importantes para mim. Vocês são o meu bem mais precioso. Sabes disso.

Querendo retardar a dor súbita, de imaginar-me a estar sem ele, olho-o nos olhos.

– Quanto tempo demora para isto curar, Will?

Ele inclina a cabeça e junta as mãos. O gesto dá-me a entender que tem uma questão mais premente aguardando a luz.

– Pelo que eu saiba, Linan, tu tens o dom da cura – de seguida abana a cabeça, incrédulo – nunca foste de ficar doente. Ou de teres um trabalho como o meu… quer dizer, mundano. De repente pareces tão…

– Humana?

Will aspira a assumpção com os olhos contritos de perplexidade.

– Foi uma escolha minha – asseguro. E agora que o digo alto, percebo que é verdade. Não foi responsabilidade dele, nem de Érica. A concretização do destino exigiu que atravessasse a singularidade das minhas escolhas e aceitasse as consequências. Exclusivamente minhas. É verdade que a transformação tinha sido dolorosa. Foi como abrir feridas por dentro, renunciar à própria sombra, correr para poder alcançar-me, mordida de revolta, de angústia. De tanto correr, vendaram-se os meus olhos. Julguei que ser humana era saber depender apenas de mim própria. E era. Porém, equivoquei-me ao pensar que tal implicava ignorar o amor que ainda sentia por Will. Reprimido na sua infinitude. Um soluço apertado. O tipo de amor que não se afoga nem num buraco negro.

– Lamento, Will.

Sob o lençol, seguro a sua mão. Ele aperta-a com força. O seu coração parece um balão a inflamar. Olho para baixo, para os nossos dedos entrelaçados. Os seus tremem. Acarico-os com o polegar, até que se acalmem.

– Devia ter ficado feliz por teres tentado seguir em frente quando parti, Will.

– Nunca segui, Linan.

– Não, não te atrevas. Não te condenes. Seguir e recriar laços é o que humanos fazem. Amo-te muito. Mesmo que estejamos separados. Não importa onde, nem como. Quero que sigas feliz. Sempre. E…

– E quem disse que eu me separei de ti? – a luz que eu achava ter desaparecido dos olhos de Will resplandece no momento em que a sua boca assalta a minha, num beijo quase violento de avidez, com um tipo de febre que suplanta o calor do meu corpo. Eram toneladas de desejo acumulado que ferviam no sangue. – Não me separei de ti – reafirma sem fôlego – e nunca o farei – continua selando o derradeiro facto nos meus lábios.

– Mas… – gaguejo afastando-me por um segundo – e os papéis…?

– Dei-te o espaço que pediste. O divórcio que querias. E odiei nós dois por isso. Mas depois acabei por compreender o que sempre tentaste dizer-me. O amor é livre. Não é um papel que vai ditar as suas condições. Devia ter respeitado isso. É um direito natural ser amado, não é?

Os meus pulmões ardem quando solto o ar para fazer um pedido, que não mais podia hesitar:

– Engenheiro Wilson, beije-me de novo.

Tomo a liberdade de moldar-me ao seu corpo, como o mel que adere às paredes de um forno quente.

– Pára, mulher – ele segura-me os pulsos tentando travar-me – estás doente.

Puxo-o de novo, tonta com os meus próprios movimentos. Onde estaria a cura senão no amor? Rendido, ele entrega-se, incapaz de abrandar, percorrendo o meu corpo com uma sede tão insaciável quanto a minha.

– Valha-me Deus, Linan! – aflito, recobra a razão que o força a impor uma pausa – há que termos juízo. Precisas de descansar.

Aceito a mistura de prazer, dor e fadiga como um sinal de que se calhar ele tem razão. Então, encosto a cabeça no seu colo e deixo-me ficar quieta, apreciando o céu azul e o luar que penetra pelas janelas. Pelas leis escritas, nenhum dos dois estava obrigado a ficar. Podiamos sair da vida um do outro a qualquer altura. Mas ambos queríamos ficar. E se calhar íriamos continuar a querer. Pelo menos naquela noite. Talvez também na manhã seguinte. Se possível, na semana posterior. E quem sabe, a vida inteira.

Desabafo de uma qawwi, Dicas, Histórias

#29 | artigos que não podem faltar em casa (e no coração) de um ser humano – casos de emergência

 

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Imagem: rutagourment

Sonolenta, deambulo pelas vastas esquinas do centro comercial. Porque é que estas tais “lojas” tem de ser tão grandes? Por outro lado, tivesse eu dormido na cama, teria evitado as dores nas costas. Todavia, adormeci no sofá da sala, a ver na tv as notícias sobre ciclones tropicais. Por conta disso, a primeira coisa que fiz ao acordar na manhã seguinte, antes de ir ao cartório, foi verificar os armários, e compilar uma lista de compras. Neste planeta, tudo é possível, especialmente nos últimos dias, em que as mudanças climáticas fazem valer a sua definição. Desastres naturais são imprevisíveis e inevitáveis. Em caso de emergência, um pouco de preparação e alerta, pode significar a linha ténue entre a vida e a morte.

Começo a recolher da prateleira os itens da minha lista. O primeiro é a água. Os humanos julgam que este bem está disponível a todo o tempo. Por causa da minha missão, posso garantir com toda a segurança, que não é o caso. Até porque pode ocorrer de ficarmos sem sistema de abastecimento, ou simplesmente impedidos de sair de casa. Regra de ouro: ter boas reservas de água potável. 4 litros por pessoa, por dia, deve ser suficiente.

Item número dois: medicamentos. Apesar de recorrer a eles só em última instância, é sempre bom ter um kit com pelo menos paracetamol. E no meu caso, já que agora qualquer ferimento precisa de cuidados (ja não cicratizo automaticamente), um kit de primeiros socorros também ajuda.

O terceiro item são velas. Corrente eléctrica pode falhar. Manter um conjunto de velas e um pacote de fósforos pode salvar do escuro durante esses períodos incertos.

Quarto item: comida não perecível. A cruz vermelha recomenda ter sempre comida para pelo menos duas semanas em caso de nos encontrarmos retidos em casa ou à espera de evacuação. Não é necessário que se acumule somente enlatados de feijão. Podemos ter comida não perecível que na verdade vamos gostar de comer, numa situação destas.

Por último, vou atrás de pilhas. Desde que estejamos bem preparados, telemóveis e computadores (essas ferramentas que tornaram-se um só com os humanos), podem continuar a funcionar, mesmo se a electricidade for abaixo. É sempre bom manter power banks carregados, baterias carregáveis e pilhas para os paraelhos que funcionam a essa base. Assim mantemos contacto com os mais próximos em caso de emergência.

– Linan?

As pilhas quase caem no chão. Não creio nos meus olhos.

– Fatinha…!

Recebo dois ardentes beijos no rosto. O calor deixa-me embaraçada. O que faço com esta vontade de abraçar Fatinha? À medida que o tempo sarou-me, senti a sua falta. Da sua amizade. Enquanto em conflito comigo mesma, não fui capaz de perceber que havia sido algo injusta com ela. Ensaio dentro de mim as desculpas. Mas limito-me a comentar:

– Há muito que não te via, Fatinha.

– Mudei de cidade. Linan, sinto-me tão culpada por tudo o que aconteceu…

– Fatinha…

– Deixa-me falar, por favor. Nunca tivemos oportunidade.

– E nem é preciso…

– Para mim é – interrompe com firmeza – Fiquei para morrer quando tu e Will terminaram. Estávamos arrasados pelo teu desaparecimento e talvez tenha sido esse desespero que acabou levando-nos a cometer aquele deslize. Porque foi só isso, um deslize. Algo passageiro, numa noite de bebedeira e de lágrimas. Depressa nos apercebemos que tinha sido um erro. Will é um homem especial, e não vai amar outra que não tu. E sinceramente, nunca perdoei-me por ter perdido a tua amizade.

As palavras entalam-se na língua. Dou por mim envolvida pela lembrança da visita ao cartório naquela manhã. Tinha sido com o propósito de assinar os papéis do divórcio. Não foi uma experiência agradável. A sala quente guardara uma gelada agonia. Uma tensão parecida a do ambiente que espera um caçador abater a presa. É um processo doloroso por natureza. Pouco humano. Will e eu assináramos a certidão, sem trocarmos muitas palavras. No fim, ele foi-se embora. Nem sequer lembro-me de ter visto o seu rosto. Parte de mim ficou derrubada ao saber que “oficialmente”, passáramos a ser nada um para o outro. Mas assim era. A reciclagem humana. O varrer e o despejo dos cacos.

– Não guardo ressentimentos Fatinha, e honestamente, peço desculpas se tratei-te mal. Na verdade o Will e e eu acabamos de assinar o divórcio.

– Oh não. Linan…

– Va la Fatinha – os meus lábios curvam-se num leve sorriso e então abraço-a. – não te sintas mal. Compreendo. Passa lá por casa um dia destes.

– Passo sim – concorda Fatinha

É incrível como tudo passa. Quem diria. Neste momento, nada do que tinha acontecido importava. Eram apenas marcas e recordações, como a foz que desaguou no mar.

Confiro os itens no cesto. Está completo. E dentro de mim, como a ponta de uma vela, acende-se uma estrela, clareando o sentimento renovado de tranquilidade e reconciliação. Coisas indispensáveis para o coração de um ser humano.