
Olá Tripulantes,
No ano passado anunciamos a abertura de submissões ao Diário de Uma Qawwi, com o intuito de partilhar com os leitores novas histórias. Esta a é primeira edição da Qawwi, uma fanzine eletrónica onde partilharemos histórias do fantástico e da ficção especulativa.
Nsta edição, apresentamos contos inéditos dos autores Adelino Albano Luís, Ana Charles e Bruno Areno. Eles nos trazem a fábula por detrás do surgimento de arco-íris, a história do Universo e a história de um homem que trocou o seu coração humano por um coração de papel.
Votos de boas leituras.
Um abraço interplanetário,
Virgília Ferrão
Diário de Uma Qawwi

Arcolino Pires
Quando as primeiras gotas timbilaram o chão da nossa aldeia, houve grande alvoroço.
― Está a “chover chuva” ― gritava-se.
As mamanas da aldeia, vestidas apenas de capulanas, saíram das palhotas carregadas de bilhas e seus corpos eram lindamente decalcados pela molha. Em suas bocas saíam as mais antigas e bonitas canções da nossa terra, numa alegria que pertence apenas às mulheres.
As crianças, sem roupa, corriam de um lado para o outro
― Chuva… Chuva… Chuva… ― Gritavam.
Os homens saudavam-se com calorosos abraços. Era o fim de uma espera que se fazia longa. Era o fim daquelas rezas silenciosas com olhares de súplica aos céus. Era o fim dos suspiros de triste esperança, de que
― Há-de vir… Está a procurar o caminho.
Porém, ao cabo de uma semana inteira de chuva que se fazia cada vez mais intensa, com suas trovoadas e relâmpagos que acendiam até o íntimo de cada um, os semblantes assumiram outras fisionomias.
― A água esqueceu-se de parar.
Sofremos tanto com a seca e, agora, é para sofrermos com a chuva?
Começaram a surgir relatos de palhotas, tão bem maticadas, destruídas pelas águas; Currais arrasados: os bois, tão donos de tamanhos, eram arrastados pela fúria das águas; E o pior
― O rio está vindo!
O rio, com a gula das águas, ambicionava outros tamanhos. Invadindo o interior das machambas, casas e o interior das pessoas, como se vasculhasse alguma coisa que lhe pertencia.
Todos nós saímos das nossas casas e fomo-nos abrigar na única casa da aldeia feita com blocos queimados. Dentro dela, no tempero do desespero, começaram a rolar teorias, afinal, em África as desgraças nunca vêm com os seus próprios pés. Havia, certamente, alguma ofensa contra os espíritos.
― Enterraram algum bebé sem cerimónia.
― As traições estão demais ― e acrescentou, ― muito sexo sem nexo.
― Alguém casou sem lobolo.
E muitas outras teorias foram aventadas. Nada poderia ser provado ou, até lá, já teríamos sido varridos pelas águas.
― Eu tenho a solução.
Quem? O louco? Quando até aos loucos é concedida palavra, é porque a situação é mesmo de desespero.
Todos olharam para ele como se portasse uma mensagem divina. Os olhos eram de renovada esperança, como se o facto de ter sido louco a vida inteira fosse para nos salvar daquelas águas e daquele rio que se aproximava. Não é verdade que todos os Messias do mundo sempre foram vistos como loucos? Por que com o Arcolino Pires seria diferente?
― Temos de varrer as águas. ― Disse, justificando assim a vassoura de palha que tinha nas mãos, até então ignorada por todos.
― Acho que lááááá nos comandos se descomandou. Precisamos varrer as águas e deixar alguém de guarda para isto não voltar a acontecer.
Falava com tal convicção que parecia uma solução óbvia. Mas só para ele. Para nós era claro: estávamos diante da nossa morte e ninguém nos poderia salvar.
Os olhares, desde as crianças aos velhos, transmitiam o mesmo medo, preocupação e desilusão. Afinal, toda morte é sempre prematura.
― Eu vou, verão o meu sinal nos céus. ― Era, uma vez mais, o Arcolino Pires.
Alguém, sem sucesso, tentou agarrá-lo para que não saísse da palhota onde nos havíamos acumulado. Era a casa mais bem construída da aldeia e seria a última a desabar.
Lá fora as chuvas continuaram intensas, com seus raios e trovoadas. Mais uma vez soou a frase:
― Sofremos tanto com a seca e, agora, vamos morrer com as águas.
Os velhos entreolhavam-se, tristonhos. Nem mesmo a lembrança dos tempos de estômagos e celeiros fartos, os podia consolar. Nesses tempos em que se bebia para celebrar a vida e se somava mulheres e mais mulheres, pois, naquela zona, isto era sinónimo de riqueza. Depois veio o tempo de seca severa. E as cerimónias sucederam-se: primeiro na pequena igreja de caniço deixada pelos missionários e, depois, nas sombras das árvores sagradas. Insatisfeitos com a demora da resposta, levamos os batuques, rezas e canções cerimoniais para o mais próximo possível dos ouvidos dos nossos antepassados: o cemitério tradicional. E lá a aguardente era quase um suborno: despejávamos umas gotas em cima das campas e dizíamos:
― Mandem chuva que nós damos mais nipa.
Tudo isto eram formas de namorá-los para ver se aceitavam enviar algumas gotas de chuva.
― Já nem precisam ser gordas… bastam que sejam gotinhas, meros pingos.
Desses que só servem para mostrar que ainda não se esqueceram de nós. Os céus, porém, respondiam com mais calor e, com ele, a fome e a miséria.
A seca foi tão severa que as pessoas desenterravam as sementes nas machambas, já murchas, para pôr nas panelas. Outros morreram por colocar na panela raízes incomestíveis, dessas que só são visíveis aos olhos da fome. É como diz o ditado: O que mata não engorda… ou será o contrário? Bom, eu…
― A água está ireeeee!…― Gritou alguém, para o silêncio dos que já se tinham adiantado para os choros.
Admirados, saímos da casa e tudo a volta tinha virado uma planície, pasto das águas. Mas é como diz Isaú Meneses, cantor largamente admirado naquela aldeia:
― Enquanto haver vida, há esperança[1].
Mas o que nos chamou mais a atenção foi o que estava pendurado nos céus, como se alguém, com uma grande vassoura, tivesse varrido as nuvens em formato de um arco com diversas cores. Era o sinal. Não havia dúvida:
― Foi obra de Arcolino Pires… Ele salvou-nos …disse que mandaria um sinal…
Gratos, saímos pelas aldeias vizinhas espalhando o feito do Arcolino Pires, o nosso salvador. E a informação voou.
Da boca do povo, porém, e com o tempo, Arcolino Pires começou a ser chamado de Arco-íris. Para nós não importa, desde que, após as chuvas, olhem para o sinal nos céus e saibam que tem alguém de guarda, cuidando de nós, impedindo que as águas nos devorem.
[1] Isaú Meneses, esperança. Álbum esperança. 1999.
Por Adelino Albano Luís

Adelino Albano Luís nasceu em 1998 em Chimoio. Licenciado em Filosofia pela UEM. É autor da obra ″Cronicontos da Cabeça do Velho″ (2022), prémio literário Calane da Silva ⁄ Alcance Editores (4ª edição- 2021). Conquistou o primeiro lugar do concurso de Crónicas da 1ª edição da Feira de Livros da Beira (2021); Conquistou o primeiro lugar do concurso literário Dia mundial da Língua Portuguesa: estórias pandémicas e foi finalista do prémio fundação Fernando Leite Couto (2022), com a obra Estórias trazidas pela Ventania. Participou em algumas antologias, com destaque para ″Espíritos Quânticos: uma jornada por histórias de África em ficção especulativa-Diário de uma Qawwi (2022) com o conto ″O Caçador de Elefantes″
O Mundo Distante em Nós
Quando a criação estava pronta, o SENHOR do Universo disse para a SUA companheira e seus descendentes imediatos: Façamos, agora, no planeta Terra, um Ser à nossa imagem e semelhança!
Como assim, o Homem não foi o primeiro a Ser criado por Deus? Já existiam outros planetas antes de Terra? Há quanto tempo?
Há mais de 40 milhões de anos o Arcanjo Miguel foi enviado à Lamúria para preparar o planeta Terra para um novo Ser que o habitaria, o Homem. Antes disso, Lamúria era somente habitada por seres hominídeos que nunca saíam das cavernas.
E onde andam esses hominídeos?
Ainda vivem nas cavernas. Mas, antes, deixe-me continuar a história.
O SENHOR do Universo vendo, através da SUA imaginação, que a VIDA para além dele seria fantástica, projectou, a partir da SUA mente, uma companheira para o seu lado oposto, de forma a complementá-lo. Tendo gostado dessa projecção, amou-a profundamente com o seu Espírito Puro e Invisível. Vendo que a VIDA dos dois era maravilhosa, o SENHOR enviou a SUA Centelha Divina para a SUA companheira, que concebeu o SEU UNIGÊNITO. ESTE possuía as mesmas caracteristicas dos seus progenitores.
Vendo ELES que o que criavam e projectavam através da sua mente era bom, decidiram projectar outros seres com espírito puro, que pudessem fazer companhia ao UNIGÊNITO, na nona dimensão.
Esses seres são aqueles que nós conhecemos como Anjos. Arcanjo Uriel, Gabriel, Miguel e Rafael são os mais conhecidos.
Mas existe, também, o Lúcifer, que dizem ser o Anjo mau!
Sim, é verdade, mas isso é assunto para outro dia. Hoje eu quero-me debruçar sobre o papel destes 4 anjos que mencionei,especificamente sobre o papel do Arcanjo Miguel.
Este anjo, além de ter um papel de liderança na protecção dos Portais Divinos, tem, também, o papel de liderança na criação e protecção dos novos mundos.
É por isso que a ele foi designada a tarefa de preparar o Planeta Terra para a recepção de um novo Ser: o Homem.
O Homem foi projectado nos céus e trazido para a Terra assim que o Arcanjo Miguel criou todas as condições para que o novo Ser nela habitasse.
Os pretinhos são os nossos ancestrais, eles foram os primeiros a viver em África. São os pais dos lemurianos. Os lemurianos eram homens belos, altos, atléticos e donos de uma inteligência sublime. Eles dominavam a tecnologia 5D e tinham a capacidade de se transmutar para diferentes formas físicas e de se deslocarem entre 2 dimensões diferentes ao mesmo tempo. Dominavam a matemática, a física quântica e a genética.
Depois de muitos milhões de anos transformando o planeta Terra naquilo que hoje é, eles começaram a ficar, por um lado, aborrecidos com a mesmice em que viviam e, por outro, arrogantes. Assim, começaram a desafiar as Leis Universais fazendo experimentos com outros seres humanos e não humanos através da manipulação genética.
Vendo que isso era desastroso para o projecto desenhado para o Homem, o SENHOR decidiu afundar a Lemúria depois de escolher uma família que, apesar de todos os poderes, nunca tinha agido contra as Leis Universais.
̶ Noé é a família?
̶ Ai como és esperto, sim!
̶ Noé foi o escolhido, por isso, graças à sua boa índole, hoje existimos.
̶ Tenho a impressão de que nós e os lemurianos somos parentes.
̶ Por quê? ̶ Quis saber, entre risos.
̶ Veja, como eles, somos inteligentes, ambiciosos, egocêntricos e gostamos de manipular geneticamente.
̶ Pois! É verdade e preocupante!
Depois da Lemúria veio a Atlantis. Depois da Atlantis veio a Amafrica, em que os índios, celtas, egípcios, maias, aborígenes viveram (e ainda vivem índios, egípcios e aborígenes).
̶ E os aborígenes são mesmo gente?
̶ Que pergunta! Claro que o são. Por que fazes essa pergunta?
̶ Porque num grande relatório que os ingleses fizeram para a rainha deles, eles afirmaram categoricamente que a Austrália era uma terra linda que parecia um paraíso. Com plantas lindas, animais exóticos e com uma paisagem como um conto de fadas, mas sem nenhum ser humano!
̶ Olha, é óbvio que esse relato não contou toda a verdade, pois os aborígenes são pessoas que ainda existem um pouco por toda a Austrália. Basta lá ires que os verás. É verdade que constituem cerca de 1.8% do total da população australiana, mas existem.
̶ E a Telos, será que existiu mesmo?
̶ Áh, a Telos…a telos não existiu, EXISTE.
̶ Existe? Como assim, como podes afirmar com tanta certeza? Se existe, onde ela está?
̶ Sim, a Telos existe, existe em todo lado, no mundo subterrâneo, debaixo de cada montanha com formato de animal, planta ou Homem.
̶ A sério? Então quer dizer que debaixo do Monte Mtuquê em Cuamba, da Cabeça do Velho em Chimoio, Ayers Rock na Austrália ou Montanhas Azuis em Montana está a Telos?
̶ Bingo!
̶ Uau! Então me explica, o que é a Telos?
̶ Lembra que te falei dos hominídeos?
̶ Sim.
̶ Pois, eles habitam a Telos, junto de seres angelicais, numa sociedade tão avançadaque a nossa mente humana, tal como a conhecemos, não consegue alcançar. Veja que nós ainda vivemos e concebemos o mundo na 3ª dimensão, mas a Telos já está na 5ª dimensão. Mesmo estando aqui no planeta Terra, os povos que lá habitam tem um sentido de cooperação e colaboração tão grande que nada falta a ninguém. Todos têm o que precisam, todos são felizes e vivem uma vida alegre, de riqueza e de prosperidade. Tudo baseado no AMOR incondicional e regidos por uma Lei e Ordem que agrada a todos.
̶ Deve ser o Paraíso.
̶ É sim, o Paraíso.
̶ Me conta mais avô, como fazemos para viver nesse paraíso?
̶ Ah menino isso é para ser contado na próxima roda à volta da fogueira… e só trazeres uma garrafa do melhor vinho tinto que há.
̶ Então esse é o acordo? Uma garrafa do melhor vinho tinto por uma história?
̶ É sim.
̶ Combinado!
̶ Combinado.
Por Ana Charles

Ana Francisco Charles, conhecida por Anita # Mai Nkulo nos meandros da família, adopta o cognome de Mai Patti, nome dado pela sua mãe desde pequena pela sua forma despreocupada de andar. Nasceu na Vila de Manica no ano de 1966. O seu gosto pelas letras vem desde a tenra idade de 4 anos quando no lugar de brincar com bonecas preferia ler livros como a colecção de aventuras de Anita e mais tarde romances de Corin Telado. Depois disso o seu gosto pela leitura só cresceu e estando no ensino secundário teve a oportunidade de escrever e publicar alguns poemas no Diário da Beira. Profissionalmente, é mais conhecida por Ana Charles, Médica Generalista com especialidade em Saúde Publica pela Universidade Eduardo Mondlane. Com Mestrado em Saúde Publica na área de Promoção para a Saúde pela Universidade de Queensland na Austrália. Adora viajar e fazer passeios longos na natureza. Fazer viagens internacionais principalmente para países onde o clima é seco e frio e interagir com povos e culturas diferentes é algo que a encanta muito. Aprecia paisagens montanhosas e a vida no campo. A ajuda ao próximo é algo que pratica com regularidade através de pequenos gestos como doações regulares a instituições de caridade como centro de apoio à velhice, igrejas ou centros de refugiados. Mãe de 5 filhos, Ana tem uma filha biológica e 4 enteados, avó de 3 meninas e 1 menino.
Coração de papelão
Nascera num país não apropriado. Não passava de um Zé ninguém. Sem estatuto social. Adalberto era uma grande aberração aos olhos de quem o via. Ninguém se dava ao trabalho de cumprimentá-lo. Seu problema: ser cauteloso demais. Talvez, demasiado amoroso, atencioso e paciente num mundo que era urgente. Na verdade, Adalberto era o único homem que nutria temor na cidade-sem-medo. Estudava o inimigo e conhecia as suas fraquezas. E isso ia contra a lei daquela cidade. As pessoas da cidade-sem-medo não eram cautelosas.
Quando se recrutavam jovens para os campos de batalha, Adalberto era sempre ignorado.
— Precisamos de homens não inteligentes, mas sem medo, e tu, jovem, és a personificação do medo — Diziam em gargalhadas, todas a vez que o jovem homem se candidatava.
Numa dessas manhãs de recrutamento, Adalberto insistiu tanto que venceu. “Milagre”, pensou ele, deixando escapar um sorriso vitorioso. A sua velha mãe, que jamais sentira medo na vida, ficou felicíssima. Aqueles olhos que outrora se viram melancólicos, ganharam vida.
— Finalmente o meu filho perdera o medo, tornar-se-á comum, assim como nós — Dizia ela alegre enquanto os militares tiravam o jovem aos empurrões de dentro da sua casa. A mãe derramou nenhuma lágrima, afinal, não possuía medo algum, muito menos previa os possíveis riscos que o filho correria no campo de batalha. Estava Felicíssima, pois não mais seria a maior aberração entre as amigas. A velha saiu de casa gritando aos ventos: O meu filho finalmente perdeu o medo!
Depois de uma semana, um general bate à porta da velha, e ela fica pasma:
— O que significa isso?— pergunta endireitando os óculos, prestes a tombarem sobre o chão húmido.
— Sinto muito, Senhora— responde o general aborrecido. — Esse filho que a Senhora tem é um pau torto e torto morrerá. O temor sobre o seu Ser é tanto que passava horas a tentar estudar o inimigo— Fixou os olhos nos da velha e acresceu — Ele diz que é necessário estudar o inimigo para conhecer as suas fraquezas. Ele ainda disse que devemos ter medo, medo de perder a nossa nação, a nossa cultura, o nosso povo. Fique com ele.
O general empurra-o de volta para os braços da progenitora.
A velha ficou ali, perplexa, imóvel. Aqueles sentimentos ataram-lhe o corpo. Virou-se para o filho:
— Essa cabeça que não regula, não te vai ajudar. Ninguém te quer por perto. Mas também quem te iria querer? És muito cauteloso, fazes as coisas, pois fazes, mas só depois de muito ponderares. Tenha coragem, filho, faça-o de olhos fechados, Adalberto! — Dizia a velha— Aja por instinto, assim como os grandes animais ferozes.
Passado alguns dias, Adalberto sai a rua. Com os olhos presos no chão, escuta murmúrios e insultos ao vento. Afinal, jamais alguém tinha sido expulso do campo de batalha por medo. Muitos morriam. Nem metade deles voltava à casa. Exausto de semear os olhos sobre a terra, Adalberto ergueu o rosto. Mas, de imediato, encolheu-se, embaraçado. Não era medo dos falatórios do povo, mas sim do seu próprio coração. Encantara-se com a mulher diante de si. Estava apaixonado, ela acabara de roubar-lhe o coração.
Pensara em falar-lhe dos seus sentimentos naquele mesmo instante, mas preferiu aguardar e entender melhor o sentimento que o cativara.
Depois de semanas, vai ao encontro da mulher, exprime o seu interesse, mas ela desafia-o, dizendo que só o aceitará depois que perder o medo.
Cabisbaixo, Adalberto faz-se a rua, e quando decide erguer os olhos para contemplar a cidade que dele tem nojo, nota uma oficina. No interior, por detrás do balcão, está um idoso, de óculos com grandes lentes e mal de tossir.
— O que o senhor trouxe para que eu concerte?— questionou o velho, acendendo um cigarro.
— O meu coração.
— Ah!— exclamou o velho— Teria que o deixar comigo por alguns dias.
— Mas eu não posso viver sem um coração— respondeu Adalberto.
O velho direccionou-se para um armário alto e de lá tirou um coração de papel. Entregou-o a Adalberto, dizendo:
— Use-o enquanto conserto o seu.
— Funciona perfeitamente? É igual aos demais?
— É um coração de papel.
Da oficina, Adalberto saiu com um coração de papel novinho em folha. E já não era o mesmo. Dali em diante, passou a ser igual aos outros. Já não tinha interesse na mulher que vira na rua. Interessava-se por todas que via passar. Fora-se a cautela. Passara a ser violento. Metia-se em brigas nas ruas, roubava e ninguém o criticava. Afinal, era igual a todos.
Um dia passou em frente da oficina. Decidiu entrar.
— Deixei um coração aqui, há anos.
— Prontos, não se preocupe, lembro-me perfeitamente de si. — O homem retirou do armário um coração coberto por um pano branco.
— Consertou?
— Não. — Respondeu o velho ajeitando os óculos.
Adalberto sentou-se na poltrona da oficina e suspirou profundamente.
— O desconserto deve ser maior.
— Nunca vi em toda minha vida, um coração tão perfeito, tão completo feito este. Ele não requer um reparo — Explicou o velho estendendo-lhe o coração. Adalberto recusou-o.
— Para o senhor talvez seja perfeito, mas para mim e para a minha gente esse coração só traz decepções, desigualdades e prejuízos. Para o povo, o coração de papel, esse sim é perfeito.
Levanta-se da poltrona e diz:
— Gostou do coração? Fique com ele, eu ficarei com o de papel.
— Mas não existe, Senhor, coração tão perfeito quanto o seu!— Insistiu o idoso desesperado. Adalberto aproximou-se do velho, agarrou-lhe as mãos trémulas e disse:
— Já lhe disse: para este país, para esta gente, esse coração não está bom. Gostou? Fique com ele. O coração de papel, sim, é perfeito.
Por Bruno Marquês Areno

Bruno Marquês Areno, nascido em Nampula, é autor de “Fotografias Feitas à Letras” e co-autor de livros como “O Estrangeiro”; “Olhares Negros”; “Poesia Brasileira”; “Água”; “Poemas do Eu”; “Alma de Mar”, entre outros.