A malária é uma doença infecciosa, transmitida por mosquitos e causada por protozoários transmitidos pela fêmea infectada por plasmódio. O período de incubação da malária varia de acordo com a espécie de plasmódio e qualquer humano pode contrai-la. Os sintomas mais comuns da malária são a febre, calafrios, fadiga, vómitos, náuseas e dores de cabeça. Em casos graves pode causar convulsões, coma ou morte. Entre as principais medidas de prevenção individual da malária estão o uso de mosquiteiros, roupas que protejam pernas e braços, telas em portas e janelas e uso de repelentes. É muito importante, assim que diagnosticado, tratar a doença.
Oxalá eu tivesse sabido toda esta informação há algumas semanas, antes da minha última viagem. Achava que o meu corpo não pudesse sofrer nada além de uma “dorzinha de cabeça”. Mas podia.
Passei a tarde inteira sem apetite. A moleza a roer os ossos é a sensação mais estranha que já tive em toda a minha vida. É oficial: pela primeira vez, estou doente.
– Tens que ir ao hospital – adverte Érica que está a passar uma temporada comigo – meu Deus – assustada, retira a mão da minha testa, como se tivesse levado um esticão – vou ligar para o pai.
– Filha, nem pensar.
A minha cabeça turva-se de pensamentos tumultuosos. Embora esteja perplexa com os acontecimentos no meu corpo, não quero incomodar Will. Mas o estômago desafia-me. E todas as minhas caras ilusões, de ser autossuficiente e aguentar-me só, como uma valsa despojada de orquestra, começam a dissipar-se debaixo dos calafrios que congelam-me a pele. Érica parece estar certa. Talvez seja melhor ir ao hospital. Penso em chamar um táxi, mas quem tomaria conta da menina? Em quem confiar? Incapaz de fazer mais equações, agarro-me ao que resta de lucidez e faço a tão temida chamada.
– Estou?
– Will, podes vir à minha casa, por favor?
Capto uma espécie de impaciência na sua voz.
– Agora? – e depressa acrescenta – Passa-se algo com a Érica…?
– Nao, Will, sou eu. Acho que não estou muito bem.
Dou por mim no meio da neve de Russia. Mas depois lembro-me que já não sou do tipo que se teletransporta. Russia é o meu próprio corpo.
– Talvez precise de ir ao hospital. – digo com urgência.
Sinto uma respiração pesada e hesitante do outro lado da linha.
– Certo. Estarei aí em dez minutos. Quinze no máximo. Até já.
A verdade é que não me lembro de como ele chegou. Tenho a vaga ideia de ver Érica abrir uma porta, ter estado numa clínica, e finalmente, debruçada sobre um lavatório todo vomitado.
Abro os olhos no leito da cama. Toalhas húmidas e carteiras de medicamentos quedam-se pela cabeceira. Um sobretudo escuro espreita pelo braço da poltrona e uma voz familiar atravessa a porta fechada.
– Lamento imenso. Posso ter outra chance? Sim, eu sei. Acabei perdendo o voo, mas deveu-se a uma emergência. A minha esposa está doente, tive que cancelar a viagem. Sim, sim… claro, engenheiro, é bastante razoável. Agradeço eu pela compreensão. Grato e até breve.
Alguns minutos depois, a porta afasta-se num chiar, revelando a figura de Will. Envergonho-me por sentir-me tão parvamente aliviada.
Ele senta-se à borda da cama, e ao ver o meu hermético trejeito, faz-me um carinho no rosto.
– Malária de uma cruz não é brincadeira, meu anjo. Mas já, já estás melhor.
– Ias viajar Will?
Ele sorri apologeticamente, continuando a carícia.
– Não te preocupes com isso, já remarquei, está tudo tratado.
– Oh Wilson…
Claro que preocupava-me. E desejo escapar desta minha ineficiência. Ressinto-me da ausência de tenacidade da carne humana, consome-me um estrepitoso embaraço.
– Lamento que tenha prejudicado os teus planos Will, não imaginei.
– Não lamentes – ele faz com que a sua mão deslize pelo meu cabelo, com o vagar e a harmonia da água de chuva, que corre simétrica entre os dedos – Tu e a Érica são muito importantes para mim. Vocês são o meu bem mais precioso. Sabes disso.
Querendo retardar a dor súbita, de imaginar-me a estar sem ele, olho-o nos olhos.
– Quanto tempo demora para isto curar, Will?
Ele inclina a cabeça e junta as mãos. O gesto dá-me a entender que tem uma questão mais premente aguardando a luz.
– Pelo que eu saiba, Linan, tu tens o dom da cura – de seguida abana a cabeça, incrédulo – nunca foste de ficar doente. Ou de teres um trabalho como o meu… quer dizer, mundano. De repente pareces tão…
– Humana?
Will aspira a assumpção com os olhos contritos de perplexidade.
– Foi uma escolha minha – asseguro. E agora que o digo alto, percebo que é verdade. Não foi responsabilidade dele, nem de Érica. A concretização do destino exigiu que atravessasse a singularidade das minhas escolhas e aceitasse as consequências. Exclusivamente minhas. É verdade que a transformação tinha sido dolorosa. Foi como abrir feridas por dentro, renunciar à própria sombra, correr para poder alcançar-me, mordida de revolta, de angústia. De tanto correr, vendaram-se os meus olhos. Julguei que ser humana era saber depender apenas de mim própria. E era. Porém, equivoquei-me ao pensar que tal implicava ignorar o amor que ainda sentia por Will. Reprimido na sua infinitude. Um soluço apertado. O tipo de amor que não se afoga nem num buraco negro.
– Lamento, Will.
Sob o lençol, seguro a sua mão. Ele aperta-a com força. O seu coração parece um balão a inflamar. Olho para baixo, para os nossos dedos entrelaçados. Os seus tremem. Acarico-os com o polegar, até que se acalmem.
– Devia ter ficado feliz por teres tentado seguir em frente quando parti, Will.
– Nunca segui, Linan.
– Não, não te atrevas. Não te condenes. Seguir e recriar laços é o que humanos fazem. Amo-te muito. Mesmo que estejamos separados. Não importa onde, nem como. Quero que sigas feliz. Sempre. E…
– E quem disse que eu me separei de ti? – a luz que eu achava ter desaparecido dos olhos de Will resplandece no momento em que a sua boca assalta a minha, num beijo quase violento de avidez, com um tipo de febre que suplanta o calor do meu corpo. Eram toneladas de desejo acumulado que ferviam no sangue. – Não me separei de ti – reafirma sem fôlego – e nunca o farei – continua selando o derradeiro facto nos meus lábios.
– Mas… – gaguejo afastando-me por um segundo – e os papéis…?
– Dei-te o espaço que pediste. O divórcio que querias. E odiei nós dois por isso. Mas depois acabei por compreender o que sempre tentaste dizer-me. O amor é livre. Não é um papel que vai ditar as suas condições. Devia ter respeitado isso. É um direito natural ser amado, não é?
Os meus pulmões ardem quando solto o ar para fazer um pedido, que não mais podia hesitar:
– Engenheiro Wilson, beije-me de novo.
Tomo a liberdade de moldar-me ao seu corpo, como o mel que adere às paredes de um forno quente.
– Pára, mulher – ele segura-me os pulsos tentando travar-me – estás doente.
Puxo-o de novo, tonta com os meus próprios movimentos. Onde estaria a cura senão no amor? Rendido, ele entrega-se, incapaz de abrandar, percorrendo o meu corpo com uma sede tão insaciável quanto a minha.
– Valha-me Deus, Linan! – aflito, recobra a razão que o força a impor uma pausa – há que termos juízo. Precisas de descansar.
Aceito a mistura de prazer, dor e fadiga como um sinal de que se calhar ele tem razão. Então, encosto a cabeça no seu colo e deixo-me ficar quieta, apreciando o céu azul e o luar que penetra pelas janelas. Pelas leis escritas, nenhum dos dois estava obrigado a ficar. Podiamos sair da vida um do outro a qualquer altura. Mas ambos queríamos ficar. E se calhar íriamos continuar a querer. Pelo menos naquela noite. Talvez também na manhã seguinte. Se possível, na semana posterior. E quem sabe, a vida inteira.