Desabafo de uma qawwi

#33 | De volta ao começo: vamos abrandar

Woman meditating

Imagem: Zeenedout

Vamos humano, desacelere o passo. Não é imperativo manter-se em pé, quando as pernas querem fraquejar. De outra forma, por quê haveria tanto medo? Há muitas horas no dia, para organizar a aula online das crianças, tratar as tarefas domésticas, partilhar a foto do pão caseiro no Instagram, e executar aqueles vinte burpees de modo a manter o físico.

Sim… há muito por fazer. E o muito será feito. Mas às vezes é importante não fazer nada. Sente-se aqui comigo, diante das estrelas. Podemos ser os dois, perfeitamente incapazes, diante destas águas? Não, não há nada de errado nisso. Em deixar-se apenas flutuar. Respirar, sem tencionar nada além. Meditar, sem pretensões de atingir o nirvana. Há que deixar-se ser atropelado por esta frente de emoções, sem protestar. Apenas sobrevivendo, tão simplesmente, sobrevivendo.

Afinal de contas, nenhum humano quer morrer, não é verdade? Mas de nada vale lavar tantas vezes as mãos, se não lavar e tirar os vírus da alma (e acreditem, haverá um dia em que as almas vão durar). Que se evaporem todos os egoísmos e exclusões, e se conjuguem todos os verbos e sinónimos do bem-querer.

– Mãe…! Oh, mãe…! Depois da morte, para onde vamos? Fazemos mesmo a transição para a tua casa, reino Stefanotis?

Pronto. Eis um pensamento que não me apetece ruminar esta noite. Will, todo sorumbático, lança-nos um olhar curioso e ajeita a régua sobre a planta, observando-me lidar com os questionamentos da filha.

– Não vais morrer, meu anjo, não tens de pensar nisso.

Érica franze os lábios. A frustração prevalece no seu terno olhar.

– Então até quando ficaremos fechados aqui dentro? Tenho saudades da escola, dos meus amigos.

Pobre Érica. Humanos não são humanos, sem outros humanos.

Não acreditem muito nas promessas de que o vosso planeta vai mudar. Já vos conheço tempo o suficiente para saber isso. Todavia, algumas coisas serão diferentes. O conceito de fronteiras resistirá, embora vocês passem a perceber que na verdade, elas não existem. Assistirei a minha filha ir ao cinema com os amigos, pelas plataformas da internet. E quando tudo isto passar, os seres humanos terão descoberto outras formas de amar. Mais do que hoje são capazes. E para que perpetue na consciência esta dura marca, será instituído um feriado, um dia por ano, para as pessoas ficarem em casa, reconectadas com o Universo.

– Não é só por ti que tens que ficar em casa, meu amor. É pelos teus amigos também, de quem tanto gostas. E olha que nem todos os seres humanos têm essa possibilidade. Há pessoas que tem que ir à rua, para cuidar das outras. Há quem tem que ir à rua, para poder sobreviver. Temos que ser responsáveis, pensar nessas pessoas, pensar em ajudarmo-nos e cuidarmo-nos, sempre. Vai lá ao WhatsApp, liga aos teus amigos, diz-lhes que tens saudades. Eles vão gostar de saber.

Os olhos dela cintilam, enquanto mete os auriculares aos ouvidos e agarra-se ao telemóvel.

– Ok, mamã.

Ah, minha pequena humana. Que nunca te esqueças, nunca desaprendas, a tocar as cordas destes grandes instrumentos musicais. A solidariedade e a amizade, universais em qualquer trilha da vida.

Will finalmente pousa as plantas e a régua, arrastando-se de seguida para o quarto. Está derrotado. Este ser humano não sabe abrandar. São muito afiadas as garras da angústia que cravaram a sua pele. As propinas da Érica, os deadlines da empresa, a dispensa vazia, os cuidados para não contaminar ninguém depois que volta da rua, a minha gravidez de risco, a falta de ciência sobre o assunto, o medo de perder a família. Will mergulhou, enfim, em profundo estado de ansiedade. O que eu devia ter percebido, porém, é que o seu ar abatido devia-se à outra coisa. O elemento que o atormentava era bem mais elevado do que a simples ansiedade. Era algo assustadoramente extraordinário, frio como a solidão. Apavorante, para dizer a verdade.

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