Desabafo de uma qawwi

#33 | De volta ao começo: vamos abrandar

Woman meditating

Imagem: Zeenedout

Vamos humano, desacelere o passo. Não é imperativo manter-se em pé, quando as pernas querem fraquejar. De outra forma, por quê haveria tanto medo? Há muitas horas no dia, para organizar a aula online das crianças, tratar as tarefas domésticas, partilhar a foto do pão caseiro no Instagram, e executar aqueles vinte burpees de modo a manter o físico.

Sim… há muito por fazer. E o muito será feito. Mas às vezes é importante não fazer nada. Sente-se aqui comigo, diante das estrelas. Podemos ser os dois, perfeitamente incapazes, diante destas águas? Não, não há nada de errado nisso. Em deixar-se apenas flutuar. Respirar, sem tencionar nada além. Meditar, sem pretensões de atingir o nirvana. Há que deixar-se ser atropelado por esta frente de emoções, sem protestar. Apenas sobrevivendo, tão simplesmente, sobrevivendo.

Afinal de contas, nenhum humano quer morrer, não é verdade? Mas de nada vale lavar tantas vezes as mãos, se não lavar e tirar os vírus da alma (e acreditem, haverá um dia em que as almas vão durar). Que se evaporem todos os egoísmos e exclusões, e se conjuguem todos os verbos e sinónimos do bem-querer.

– Mãe…! Oh, mãe…! Depois da morte, para onde vamos? Fazemos mesmo a transição para a tua casa, reino Stefanotis?

Pronto. Eis um pensamento que não me apetece ruminar esta noite. Will, todo sorumbático, lança-nos um olhar curioso e ajeita a régua sobre a planta, observando-me lidar com os questionamentos da filha.

– Não vais morrer, meu anjo, não tens de pensar nisso.

Érica franze os lábios. A frustração prevalece no seu terno olhar.

– Então até quando ficaremos fechados aqui dentro? Tenho saudades da escola, dos meus amigos.

Pobre Érica. Humanos não são humanos, sem outros humanos.

Não acreditem muito nas promessas de que o vosso planeta vai mudar. Já vos conheço tempo o suficiente para saber isso. Todavia, algumas coisas serão diferentes. O conceito de fronteiras resistirá, embora vocês passem a perceber que na verdade, elas não existem. Assistirei a minha filha ir ao cinema com os amigos, pelas plataformas da internet. E quando tudo isto passar, os seres humanos terão descoberto outras formas de amar. Mais do que hoje são capazes. E para que perpetue na consciência esta dura marca, será instituído um feriado, um dia por ano, para as pessoas ficarem em casa, reconectadas com o Universo.

– Não é só por ti que tens que ficar em casa, meu amor. É pelos teus amigos também, de quem tanto gostas. E olha que nem todos os seres humanos têm essa possibilidade. Há pessoas que tem que ir à rua, para cuidar das outras. Há quem tem que ir à rua, para poder sobreviver. Temos que ser responsáveis, pensar nessas pessoas, pensar em ajudarmo-nos e cuidarmo-nos, sempre. Vai lá ao WhatsApp, liga aos teus amigos, diz-lhes que tens saudades. Eles vão gostar de saber.

Os olhos dela cintilam, enquanto mete os auriculares aos ouvidos e agarra-se ao telemóvel.

– Ok, mamã.

Ah, minha pequena humana. Que nunca te esqueças, nunca desaprendas, a tocar as cordas destes grandes instrumentos musicais. A solidariedade e a amizade, universais em qualquer trilha da vida.

Will finalmente pousa as plantas e a régua, arrastando-se de seguida para o quarto. Está derrotado. Este ser humano não sabe abrandar. São muito afiadas as garras da angústia que cravaram a sua pele. As propinas da Érica, os deadlines da empresa, a dispensa vazia, os cuidados para não contaminar ninguém depois que volta da rua, a minha gravidez de risco, a falta de ciência sobre o assunto, o medo de perder a família. Will mergulhou, enfim, em profundo estado de ansiedade. O que eu devia ter percebido, porém, é que o seu ar abatido devia-se à outra coisa. O elemento que o atormentava era bem mais elevado do que a simples ansiedade. Era algo assustadoramente extraordinário, frio como a solidão. Apavorante, para dizer a verdade.

Outras maravilhas humanas

Crónicas de uma viagem anunciada

Por Jorge Ferrão

MSC Orchestra 

Vamos iniciar o percurso. Cruzar os oceanos que Vasco da Gama e Luis de Camões só passaram próximo. Não poderíamos imaginar a grandeza do Orchestra. Para dificultar, o nosso camarote fica na viola. Nono andar. Estibordo. Tem todo o tipo de gente. Camisetes e chinelos. Corpos desnudados e indiscretos. Cadeirantes e apressados. Imensidão de sonhos. Desejos e vontades. Presépios e árvores natalinas. O Índico recebe-nos de braços abertos, sem sol. Por enquanto, também, sem marés. Até agora só ondulamos os espíritos. Depois, serão as almas. A esta altura, e condicionados no décimo terceiro andar de um prédio flutuante, parece um mar nunca antes navegado. Este é o lugar onde terminam todos os medos. Não sabemos se contemplamos as pessoas ou as águas. Já sem os passaportes, somos transformados em números. Quem disse que os negreiros eram só para os exilados? Fica a promessa. Seriam 12 dias de águas e ventos. Suspiros e doces desordens. O primeiro de 12 aventuras numa viagem anunciada.

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Depressão tropical Calvinia, na rota do Orquestra (4 dias de oceano Índico)

Esta manhã o Orchestra atravessou o trópico de Capricórnio. Para celebrar, Neptuno foi designado o padroeiro e promotor da festividade. Cercado de bandeiras e crianças, Neptuno sugere que todos se sentem à volta da piscina, para que possam desfrutar dos banhos de champagne, tomate, leite e outros.

Mas, pelo coração destes 2869 cruzeirantes, as preocupações são outras. A depressão tropical Calvinia ganhou força e está em direcção às Ilhas Reunião e às Maurícias. Todos os radares e atenções se centram na Calvinia. O instinto do capitão diz que o ideal será atrasar a chegada por um dia. Viajamos a 70 nós, mais ou menos, 32 km/h. Assim, só teremos de prover auxílio a quem necessita.

Mais logo, será o final de um longo 2019. Renovam-se as esperanças, como sempre, para um 2020 de bonança, prosperidade e felicidade. Queremos a magia do novo ano transformando as nossas vidas mas não fazemos nada para sermos essa mudança. Celebraremos a ladainha de um ano melhor, mas continuaremos iguais, inflexíveis, pouco tolerantes. Champagne ajudará a afogar as mágoas e o Cruzeiro seguirá em frente, algures no meio do oceano dos sonhos.

Esta manhã as sirenes tocaram. Aconteceu o insólito. Um jovem de 19 anos equipou-se de colecte salva-vidas e atirou-se ao mar. Passava das 04:00 da manhã. Todos acordaram e, por pouco não nos cruzamos pelos corredores, tal como viemos ao mundo. Uma massiva operação de resgate fora encetada. Jovem menino são e salvo…. mas ninguém ganhou para o susto. Recuperou junto de seus familiares. Teria que abandonar o navio e regressar via aérea. As multas já estavam definidas. Ia pagar pelos demônios que se apossaram dele e pelos anjos que o salvaram.

Possession- Le Port et Saint Dennis

Os portugueses foram os primeiros europeus que visitaram esta ilha. Não admira. Era inabitada desde 1513, e apelidaram-na Santa Apolónia. Aqui localiza-se a mais alta montanha de todo o oceano Índico. 3069 metros de pura altitude. Mount Piton Des Neiges. Basta levantar a mão para saudar Deus e Jesus Cristo. Vulcânicas, com dois vulcões ainda activos, Aumenta de cada vez que as larvas fazem-se à superfície. Ao longo da história foi pertencendo a diferentes protectorados, entre Holanda, França e Inglaterra, mas, em definitivo, actualmente, pertence à França e tem a bandeira da França e da União Europeia. Um pouco maior que as Maurícias, as famosas ilhas gêmeas têm 980 milhas quadradas com mais de 40 km de praia. Estas montanhas são pura sedução. Agora, voltamos ao mar puro sem mais ameaças de ciclones e com uma saudade creola de morna e coladeira.

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Onshore

Finalmente, terra firme. Como diz o poeta. “… ao longo da muralha que habitamos há palavras de vida, palavras sem vida. Palavras imensas, que esperam por nós e, outras, frágeis, que deixaram de esperar. Há palavras acesas como barcos e há palavras homens, palavras que guardam o seu segredo e a sua posição! Há palavras diamantes, palavras nunca escritas, palavras impossíveis de escrever!

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Outras maravilhas humanas, Resenhas

Maravilhas Humanas| Artistas inspiradores: Calema, a importância da originalidade

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Imagem fonte: RTP

Ondas. Elas podem ser calmas, melódicas, propícias a embalar. Ou furiosas, absorventes, rápidas a arrasar. Os Calema são uma mistura de ambas as facetas. Talvez por essa razão a dupla de irmãos tenha escolhido este nome, que tão bem os representa. Calema significa isso mesmo “Ondas”. O mais velho chama-se Fradique. É 5 anos mais velho que o outro, António. Nasceram em São Tomé e Príncipe, descendem de cabo-verdianos, portugueses e angolares. Nutriam desde novos uma forte paixão pela música e lançaram o primeiro álbum em 2010. Actualmente são uma das grandes referências e um dos maiores fenómenos musicais em Portugal.

Enquanto António tende a liderar os vocais, ocupando-se do microfone que não deixa antever uma certa sombra de timidez, Fradique interage com o público, lançando toneladas do seu carisma. Ambos têm vozes vibrantes, são humildes, e juntos deixam-nos abismados pelo infinito talento. Mas mais do que talento, na resenha de hoje, um tanto pessoal, gostaria de relembrar o que aprendemos com os Calema. Uma premissa fundamental para o nosso dia a dia: quem define o que somos, somos nós.

Nos concertos a abarrotar por milhares de fãs, Fradique e António fazem a questão de frisar: “a probabilidade de falharmos era de 99%. Mas foi ao 1% de chance que nos agarráramos”.

É verdade. Antes de triunfarem e transformarem o seu conto de fadas em realidade, eles tiveram muitos percalços e alguns nãos. Duros nãos. Em 2013, por exemplo, altura em que ainda não eram tão conhecidos como hoje, subiram ao palco do programa The Voice na França, com os olhos brilhantes de esperança. Cantaram um tema do brasileiro Gustavo Lima. Aliás, a influência da música brasileira no trabalho dos Calema é notável, especialmente em alguns temas dos primeiros dois álbuns (Ni Mondja Anguené e Bomu Kêlê). Há quem diga que foi por terem escolhido a música errada. Seja como for, a verdade é que o jurado do The Voice não apertou o botão. Nenhum deles virou a bendita cadeira. E isso deve ter sido difícil para a dupla. Era como se naquela noite lhes dissessem que não eram bons o suficiente. Sem falar das adversidades que são naturalmente expectáveis para quem escolhe este tipo de percurso.

Mas os irmãos não baixaram a cabeça. E ainda bem que o jurado do The Voice não apertou o botão! As forças do Universo tinham outros planos para os dois rapazes. Eles estavam destinados a fazer algo que mais ninguém no mundo havia feito.

Em 2015, lançavam o segundo álbum Bomu Kêlê. Em português significa Vamos Acreditar. Foi então que começaram a ganhar mais notoriedade. E foi por acaso, nessa altura, que os ouvi pela primeira vez, na rádio. Julguei que fossem bem mais crescidos, por tanta carga emocional e experiência que imprimiam nas suas cancões. Comprei o álbum e de pronto tornei-me fã. Amole Mu tonrou-se tema de inspiração. Sentia um contentamento melancólico ao escutar Coro Coço, dançava (e farto-me de dançar) ao som de Mama Ê, divertia-me com Qual será, e ai de mim não poder assobiar com o Vou viajar. Decidi escrever à dupla, nas redes sociais, contando que tinham uma grande fã em Moçambique. Pela resposta, pareceram positivamente surpresos. Disseram que adoravam o povo moçambicano, agradeceram por acreditar neles e pediram que continuasse a divulgar o seu trabalho junto aos meus amigos, para que mais depressa pudessem vir a Moçambique. Teria o feito na altura (o que agora faço), mas a verdade é que não foi preciso. Depressa os Calema já dominavam as rádios, as colunas das discos e das farras por todo o país. Ficamos a saber que tinham vencido o STP Music Awards de 2015 (gala de música da República de São Tomé e Príncipe) em quatro das cinco categorias.

Bomu Kele album

E que deleite foi poder vê-los em 2017, a actuar na discoteca do Main.

O tempo passou e os Calema continuaram a trabalhar. Veio o álbum A nossa Vez (A.N.V) com temas ligeiramente diferentes dos anteriores, e que depressa tornaram-se espantosamente populares como o Vai, Ciúme, e o próprio A Nossa Vez. O álbum foi certificado com o disco de ouro. E adivinhem o que é que hoje em dia se canta nos palcos dos “the voice” da vida? As músicas dos Calema!

A nossa vez calema

Em Dezembro de 2019, a dupla anunciou o lançamento do seu mais recente trabalho: Yellow. Um dos temas (intitulado “abraços”) já está disponível no youtube (será que se inspiraram na campanha australiana dos abraços?). Mal posso esperar para conhecer este novo trabalho e claro, fazer uma resenha sobre o mesmo. Todavia, é mesmo Bomu Kêlê que ficou no coração e sobre o qual gostaria de repisar. Afinal de contas, sempre que penso em desistir dos meu próprios sonhos, tento lembrar-me destes meninos, que transformaram os nãos que ouviram em alavanca para o seu sonho. O que muito brilhou e os tornou especiais? Julgo que algo um tanto pessoal, frágil, que uns têm, e outros não: a originalidade. Em Bomu Kêlê, os dois irmãos tiveram participação em tudo, desde a composição de todas as músicas, até a produção. “Sinceramente achamos que os são-tomenses e não só, vão adorar. Porque fizemos os possíveis de cantar para o mundo sem no entanto, perdermos a nossa identidade, ou seja a nossa cultura. Nós acreditamos que a música são-tomense bem produzida tanto na vertente letra como também na melodia pode ter sucesso em todo o mundo” (FNAC) disseram eles na altura. Amém à isso.

É fácil vermos artistas, em todas as vertentes, perderem a sua originalidade. Nas demandas do mercado, entram numa louca e desvairada corrida, seja nos palcos, nos meandros literários, na TV ou ou passerelles, para adaptarem-se a um conteúdo mais comercial, mais “trending”, ou mais de acordo com os “standards” de quem os gere. E lá se vai a tal originalidade, sem a qual, o artista passa a ser apenas mais um número popular.

Quando vi o cantor brasileiro Zezé Di Camargo (certamente mais entendido que eu na matéria) partilhando o mesmo palco com os Calema e a pedir-lhes que cantassem o tema coro coço, por ser uma das coisas mais lindas que ele já ouvira até hoje, soube que era infalível. Há alguma magia nesta originalidade a que me refiro e que deve ser preservada.

Que os Calema (e todos artistas no geral) continuem a conquistar o mundo, sem nunca perderem o toque de magia que os impulsiona. E que voltem, muito em breve, aos palcos de Moçambique.

Por Virgília Ferrão

(Da tripulação da Qawwi)

Desabafo de uma qawwi

#28| Pode o Estado obrigar-me a evacuar em caso de emergência?

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Imagem: causa operaria

Uma das minhas maiores dificuldades continua a ser o sono. Tornou-se necessidade biológica. Sabe muito bem que dependo dele. E mesmo assim, tem a mania de adiar-se. De deixar-me no abandono. Quando isso acontece, normalmente pego no livro da cabeceira, ou então ligo a TV, a qual esta noite acabei por optar.

As notícias reportam mais um desastre natural. Céus quebrados de cinza, cidades turvadas de vento, águas galopando com fúria pelas alturas e submundos, puxando tudo o que é vida para o breu da morte. Dói o meu coração. Como se atravessado pelas lâminas das arraias que lutam por alento.

O país onde estou, também já sofreu este tipo de desastres. O rescaldo dos mesmos deixou-me com alguns questionamentos, os quais esta noite voltam à tona: a ajuda que o chamado Governo deve prestar aos cidadãos. A eficácia das evacuações, quando de carácter obrigatório.

No meu planeta, isto nunca poderia ser questionado. Aquando da terrível queda da cortina de vidro, por exemplo, bastou os trombones dispararem com a comunicação do Conselho da Unidade, para os qawwis obedecerem a recomendação de ficarem em casa. Somos um só, e a voz do nosso rei, nunca contrariou a nossa própria vontade. Pelo menos até aquele tempo.

No planeta terra, entretanto, as coisas funcionam de forma diferente. Para conviver em sociedade, os homens abdicam um pouco da sua liberdade. É tudo institucionalizado e é preciso que os direitos e deveres estejam claramente definidos e proclamados. Aliás, é essencial, porque grande também pode ser a tirania. É neste sentido, que o direito ao domicílio e residência é um direito “fundamental”.

Em casos como este, de emergência ou de perigo de vida causado por calamidades naturais, julgo que deve olhar-se por um lado para o direito dos cidadãos a permanecerem no seu domicílio, e por outro lado, a responsabilidade do Estado de proteger estes mesmos cidadãos.

Em alguns países, existem leis que permitem explicitamente evacuações forçadas em caso de emergência. Acontece, entretanto, que a implementação desses esforços tende a ser complicada. Às vezes, as pessoas não respondem às medidas de evacuação. Pelas mais diversas razões. Algumas não recebem a informação. Outras, tem receio de abandonar as suas casas e os seus bens. Algumas talvez já tenham enfrentado situações semelhantes e julgam que conseguirão sobreviver a mais uma. O problema é que estas pessoas podem, mais tarde, precisar efectivamente de socorro, situação que poderia ter sido evitada.

Que direito deve prevalecer? Mesmo estando em perigo, posso optar por permanecer em casa? ou o Estado pode usar da força para tirar-me de lá? Olhando para Moçambique, por exemplo, quando afectado pelo ciclone Kenneth, o Governo e as agências de ajuda disseram que 30 mil pessoas foram levadas para locais seguros e que um total de quase 700 mil estariam em risco. Foram criados 20 centros de evacuação em Pemba, mas foram necessários aviões, pois muitas das áreas afectadas não eram acessíveis por terra. In Jornal o pais.

Reportou-se, ainda assim,  que algumas pessoas recusaram-se a abandonar as suas casas.

Alguns estudiosos humanos argumentam que usar da força para tirar alguém do seu domicílio, sem um processo legal, constituiria a violação de um direito fundamental. O documento chamado “constituição da República” em vigor em Moçambique, diz que o domicílio do cidadão é inviolável, salvo nos casos previstos na lei. A entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade, só pode ser ordenada pela autoridade judicial competente, nos casos e segundo as formas especialmente previstas na lei.

Ora, neste mesmo documento a que me refiro acima, fala-se dos estados de sítio e de emergência. Estes podem ser declarados, no todo ou em parte do território, nos casos de agressão efectiva ou eminente, de grave ameaça ou de perturbação da ordem constitucional, ou de calamidade pública. Nestas situações, pode ser suspenso ou limitado o exercício de algumas garantias e direitos constitucionais. O Governo pode, por exemplo, tomar algumas medidas restritivas como a obrigação e permanência do cidadão em local determinado.

Desta forma, parece aceitável que em caso de declaração de estado de emergência, o Governo tenha a prerrogativa de forçar a evacuação. Mas como tal depende de um processo fundamentado, o mais importante antes de qualquer medida forçada, é a antecipação e conjugação de esforços, a disseminação de informação e sensibilização dos cidadãos. Afinal de contas, estamos a falar do bem mais precioso que é a vida. É necessário todo o cuidado. E todas as medidas e prioridades devem ser para assegurar a preservação desta mesma vida.

… respiro. Desligo a TV. A noite quente arranca da lua um intenso gemido. Todos nós estamos sujeitos às forças da natureza. A qualquer momento, podemos enfrentar uma situação de contratempo. Ao pensar nisso, pego numa caneta, pois acaba de surgir-me uma outra questão. Será que agora, como humana, estou equipada para enfrentar uma situação de emergência? Será que, por exemplo, tenho tudo em casa para, em caso de necessidade, aguentar-me uma semana sem ir às ruas?

Desabafo de uma qawwi

#27| Escolha um trabalho que você ame e não terá que trabalhar um único dia da sua vida

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Imagem: The International Educator

Nos últimos meses, encarar a vida como humana parece-me uma tarefa mais aceitável. Às vezes ando pelas ruas, absorta nos meus pensamentos, ardendo na tal melancolia, esse manto que se agarra a quem caminha só. Outras vezes, caminho mais atenta. À procura de sinais escondidos da missão que falhei. Quem sabe haja algo no semáforo fechado, na mulher de mão estendida, ou no andaime suspenso.

Há momentos em que busco tão-somente um rosto amigo. Nessas alturas, sou capaz de ver Will. No rosto do vendedor de jornais da esquina, por exemplo. Ou no simpático vizinho que dispensa alguns segundos das suas manhãs para cantar-me os bons dias. À medida que o tempo passa, eu aprecio esta memória viva dentro de mim. Aceito-a.

Todavia, há outros aspectos da vida humana que são praticamente insuportáveis. Não poder teletransportar-me é angustiante. Não tolero andar de carro, por isso a bicicleta acaba sendo um meio termo. Custa-me habituar-me as estranhezas do corpo humano. Quantas vezes acordo a meio da noite, com impetuoso calor? Que dizer então quando acomete-me uma terrível dor de cabeça? Ah, a dor de cabeça. Essa espanstosa novidade.

Em momentos de ansiedade, deixo-me sentar ao luar, entre as árvores do quintal. É assim que resolvo os meus conflitos. A olhar para estrelas, sem pressa. Permitindo-me lembrar que além delas, há muito mais. Um dia, quem sabe, eu volte ao meu planeta. É essa esperança que me consola.

A dor de cabeça começa a ceder. O stress por causa do deadline desaparece. A situação, subitamente, parece-me ridícula. Eu, Linan, stressada por causa de trabalho? Solta-se de mim uma morna gargalhada.

Algo que causou-me admiração logo que cá cheguei, foi o tempo reduzido dos humanos. 70 entre 80 anos. Essa é a média geral de vida. E mesmo assim, esta espécie passa a maior parte do tempo a trabalhar. Eu até compreendo. O sistema não permite que seja diferente. E ter um trabalho, chega a ser uma grande dávida. O que eu não compreendo, entretanto, é como tantos humanos deixam que o trabalho os frustre, sugue a vitalidade. Onde está benefício nisto? Como é que milhares de pessoas conseguem estar ao serviço de empresas e de empregadores que não valorizavam o seu esforço, nem o seu tempo? Como é que conseguem trabalhar em algo que abominam? É aterrador. E sabem porquê? Porque hoje, como humana, não tenho outra opção senão trabalhar. No princípio, achei que não fosse capaz. Mas aos poucos, a solução desvelou-se. Lenta e infalível.

Eu falo muitas línguas. Mais de quinze. Assimilei-as como quem bebe água, quando ainda era qawwi. O que eu não sabia, é que isso podia converter-se em dinheiro. Foi uma boa surpresa descobrir que ensinar outros humanos, é um trabalho comum neste planeta!

Comecei por trabalhar com crianças. Estar com elas era quase como regressar a Stefanotis. E não demorou muito para depressa começarem a surgir vários pedidos distintos. Queriam que ensinasse adultos. Que trabalhasse com umas tais “instituições”. Passei a oscilar entre “intérprete”, tradutora” e “educadora”. É engraçado como no planeta terra podemos ser várias coisas ao mesmo tempo. Isso fascina-me. O novo trabalho obriga-me a viajar com frequência. Quer dizer, andar pelo mundo e conhecer pessoas, experimentando a terra com olhos de humana, não é de todo uma obrigação. Quando muito, um acto de diversão.

“Escolha um trabalho que você ame e não terá que trabalhar um único dia da sua vida”. Disse Confúcio, um pensador e filósofo. Colei esta frase na parede do meu escritório em casa. É a prova da sabedoria humana.

O mais importante não é o dinheiro que estou a ganhar. As utilidades para ele não são tantas. A forma como o trabalho está a transformar-me sim, é fabulosa. Diminui os vácuos dentro mim, transformando-os em luminosos jardins. Em suma, o trabalho faz-me sentir, pela primeira vez, curiosidade, e até uma pontinha de alegria em ser humana.

– Oh mãe, tenho mesmo de ir? – pergunta uma voz firme e meiga. Érica surge na varanda. Coloca a pomposa mochila às costas, lança-me um olhar desgostoso – raramente estou contigo… um fim de semana é muito pouco!

Levanto-me da grama e ajeito a gola do casaco da minha filha.

– Por mim ficavas aqui o ano todo meu amor, só que o teu pai vai chatear-se se eu não for deixar-te. E se no próximo feriado formos passear? Podíamos ir acampar na praia, como fizemos na páscoa, o que achas?

Érica agita-se com os olhos saltitantes de excitação.

– O pai também vai?

– Só nós duas, meu amor.

Indignada, e como forma de protesto, ela saca os headphones cor de rosa do bolso e os mete nos ouvidos.

– Tu e o papá são uns chatos…

Acompanho a minha filha até a casa do pai. De táxi, a rota demora cerca de 15 minutos.

No portão da vivenda, Will está com uma mulher. Ela despede-se dele de forma bastante afectuosa, antes de enfiar-se num vistoso mercedes.

O meu coração bate mais depressa. Faz tanto tempo que não vejo aquele homem. Deixou a barba crescer. Parece mais velho. Tal como eu, ele também tem um trabalho. Sempre teve, pese embora eu só agora compreenda esse fenómeno na sua plenitude.

– Entra, Linan.

Mal reconheço a sua voz. Há alguns meses eu disse que queria o divórcio. Longe de imaginar que com isso, abriria as portas para a chegada de um estranho. Como quando uma árvore caí. A raiz, quem sabe, reaaproveite-se. Mas ela, jamais será a mesma.

– Senhorita Érica, depressa a lavar as mãos para vir jantar, faça o favor…

– Sim paizinho, mas não te esqueças que não tenho mais seis anos, faça o favor você também! – reclama Érica correndo pelas escadas, as botas de couro ressoando pelo soalho.

– Anda cá uma reclamona… – comenta Will, debruçando-se sobre a mesa onde estão espalhadas várias folhas gigantescas, réguas e esquadrões. Will procura algo. Se calhar o lápis encaixado na sua orelha.

– Will…

– Sim? – ele ergue a cabeça. Nos seus olhos já não há o brilho que a qawwi em mim conheceu um dia. Neles, somente uma interrogação – ah… a papelada. O advogado prometeu que até para semana finalizamos tudo, não te preocupes, estamos quase.

– Não era isso – respondo constrangida. – O lápis… – faço um gesto indicando a orelha.

Will encontra o lápis. A gargalhada que deixa escapar, floresce como uma primavera, e deixa-me mais à vontade para concluir:

– És um pai exemplar Will. Estás a fazer um bom trabalho com a Érica, ela é uma menina incrível. É isso que queria dizer.

Ele parece confuso.

– Estamos os dois, certo?

Respiro, anuo e levanto a mão.

– Bom Will, até outro dia.

Ele parece um pouco apreensivo quando pergunta-me se quero ficar para jantar.

– Se não tiveres outro compromisso, já que – ele parece cada vez mais incerto – sei perfeitamente que tens estado ocupada mas… – acaba por travar – bom, o que estou a tentar dizer é que és bem-vinda a ficar. A jantar connosco.

Observo-o de novo. Sinto-me tão insegura. Que vontade de ficar. Mas sei que não posso. Tampouco sou capaz de entender se ele de facto o quer. Os seus olhos castanhos costumavam ser a janela da sua alma. Todavia, eles carregam agora a densidade da matéria. São os olhos da diplomacia.

– Gostaria de ficar, Will, mas acho que não posso, tenho um prazo para fechar esta noite.

– Imaginei. Mas fico feliz por saber que estás a gostar do teu trabalho. Da tua nova vida.

O meu peito quebra-se em duas partes. Metade fica naquela sala, batendo acelerado. A outra metade segue comigo, controlado. Sim, o gostar de viver às vezes não é mais senão do que saber ser-se humano por si próprio. Saber que o amor pode distanciar, mas que a vida seguirá.

Desabafo de uma qawwi, Dicas

#12| 9 coisas que devia saber antes de ir estudar fora

Desabafos de uma qawwi – 2019

 

Tēnā koutou e ngā manuhiri o te ao whānui. Saudações queridos visitantes!

É assim que se diz na Nova Zelândia! É verdade, desculpem não ter contado antes. Will, Érica e eu mudamo-nos para este maravilhoso canto do mundo!

Eu, uma qawwi, que nunca pensou apegar-se tanto aos humanos, de repente, tenho uma família. Eis-me aqui neste planeta, com um parceiro e uma filha. E o que ensinam-me estes dois humanos que tanto amo? Aprendo com eles, todos os dias, que as pessoas que gostam, fazem compromissos. Quaisquer divergências, acabam em meio termos.

Ora vejamos, Will, o meu parceiro, queria fazer um tal “doutoramento” (demorou algum tempo até eu compreender o que era isso). Eu, por outro lado, tinha de seguir a minha missão. E ambos precisávamos de pensar no melhor para a pequena Érica. Nova Zelândia foi o meio termo.

Com efeito, tem sido interessante observar a vida de Will como estudante. Para os humanos, mudar de país para estudar, pode ser um desafio. Um bom desafio, dependendo de como prepara-se para ele. É fascinante conhecer pessoas e lugares novos. Mas atenção: lidar com o stress de não ter um sítio para ficar ou descobrir que a inscrição na universidade não foi feita, não é uma experiência tão fascinante assim.

No registo de hoje, decidi partilhar 9 coisas que aprendi sobre este assunto. Lições que Will e desejávamos ter sabido, antes mesmo de viajar e espero que esta informação seja útil para você que pensa um dia, ou que já está a preparar, a aventura de estudar fora!

  1. Bolsa de estudos

 

Estudar num país diferente pode trazer benefícios para aquilo que vocês humanos chamam “CV” e “carreira profissional”. Por outro lado, esta experiência permite conviver com novas culturas, aprender/melhorar outros idiomas e desenvolver a nível pessoal.

Educação no estrangeiro, entretanto, requer planeamento e investimento (ainda não sei se o dinheiro qualifica como uma boa ou horrível invenção do humano). Quem, entretanto, precisa de ajuda financeira para realizar este plano (como era o caso de Will), também pode tentar obter algo chamado “bolsa de estudos”. Pesquise sobre isso, veja os requisitos e siga avante com a submissão!

2. Pondere com atenção o destino

Universidades. Há muitas delas e de facto é sensato escolher a melhor para o seu curso. Contudo, tenha também em consideração a localização e o clima do país. Se é asmático, por exemplo, pense bem antes de mudar-se para um país extremamente frio. Por outro lado, é óptimo poder estudar num país bem localizado, para que nas férias e feriados visite outras cidades do planeta.

3. Prepare de antemão a sua chegada

Ao chegarmos na Nova Zelândia, Will e eu ficamos num hotel provisório, aguardando a acomodação definitiva. Demorou mais tempo do que o previsto e o pouco dinheiro que tínhamos minguou a olhos vistos. Evite passar por esse sufoco. Certifique-se de que leva dinheiro suficiente para emergências. Outra coisa que pode ser útil é falar com pessoas que já estudaram ou trabalharam no país de destino. Podem dar dicas valiosas, incluindo sobre alojamento.

4. Família

Se você é um jovem estudante solteiro, pode saltar esta dica. Mas, se você tem família, então a dica é que inicie a viagem sozinho(a). Afinal de contas, você vai para um país que é, para todos os efeitos, desconhecido. Os primeiros dias tendem a ser caóticos. Vai facilitar bastante o processo se você tiver tempo para organizar-se e assentar, antes de receber a família.

5. Acomodação

Descubra se a sua universidade oferece acomodação. Normalmente costuma ser um pouco mais caro, mas se você tem uma boa bolsa e está sozinho(a), os benefícios de viver perto do ensino compensarão o valor. Se, ao contrário, você tem uma família, então considere arrendar um lugar mais espaçoso e económico, ainda que seja distante da universidade. Foi o que Will e eu fizemos.

Apenas certifique-se de que esse local tem transporte próximo e acessível.

6. Housemates

Uma das experiências mais comuns quando se vai estudar fora é ter housemates. Alguns tornam-se amigos. Mas atenção, o convívio com housemates nem sempre é fácil. Não romantize um cenário das novelas. Avalie com atenção a(s) pessoa(s) com que vai morar, os hábitos, e seja, sobretudo, tolerante às diferenças.

d929_39_084_12007. Convívio internacional

Por mais incrível que pareça, os estudantes internacionais acabam por conviver mais com outros estudantes internacionais do que com os locais. Portanto, não estranhe se a princípio não for muito fácil fazer amizades com os locais. O mais importante é conhecer pessoas. Fique atento e participe nos eventos da universidade, inscreva-se em cursos e hobbies que interessem e com o tempo, acabará integrando-se melhor.

8. Aproveite viajar

Se é estudante bolseiro, vai notar que na maioria desses países, a “bolsa/salário” é paga quinzenalmente. Use a primeira parte para liquidar as despesas, e aproveite a segunda para economizar e conhecer outros países. É certo que não dá para ir à outras galáxias, com muita pena, mas não deixa de ser maravilhoso!

gifts-studyabroad9. Não se esqueça do principal

Enquanto tira o máximo proveito de estar no estrangeiro, não se esqueça do principal. Certamente não viajou tão longe para ir chumbar em território alheio! Esmere-se. Em caso de dificuldades, peça ajuda num centro de estudos ou de apoio aos estudantes. Normalmente os humanos do corpo académico estão lá para o ajudar a triunfar no desafio a que você se propôs.

Acima de tudo, seja feliz.

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Informação extra para os humanos em Moçambique:

Bolsas de Estudo para Licenciatura e Mestrado na China – 2019

O Ministério de Ciência e Tecnologia, Ensino Superior e Técnico Profissional (MCTESTP) através do Instituto de Bolsas de Moçambique (IBE) torna público que estão abertas candidaturas para bolsas para Licenciatura e Mestrado, oferecidas pelo Governo da República Popular da China para o ano académico 2019 – 2020.

As candidaturas decorrerão em todo o território nacional, via ON-LINE no www.csc.edu.cn/studyinchina ou www.campuschina.org.

Todos os documentos submetidos em on-line deverão ser descarregados, impresso e submetidos ao IBE.

1. Requisitos para licenciatura

• Ser cidadão (ã) moçambicano (a);
• Ter idade máxima de 24 anos;
• Ter concluído a 12a classe ou equivalente com a media igual ou superior a 12 valores;
• Possuir, pelo menos 12 valores nas disciplinas básicas do curso para o qual se candidata;
• Não estar a beneficiar de outra bolsa de estudo;
• Apresentar plano de estudo ate 200 palavras.

2. Requisitos para o Mestrado

• Ser cidadão (ã) moçambicano (a);
• Idade máxima de 35 anos;
• Ter concluído a licenciatura;
• Ter domínio da língua inglesa e/ ou inglesa falada e escrita;
• Apresentar plano de estudo com ate 800 palavras.

Prazo:

O prazo da entrega de todos os processos físicos submetidos, via on-line, é até às 15h30m do dia 05 de Março de 2019.

Para mais informações aceda ao link:
http://cloud.mctestp.gov.mz/clo…/index.php/s/2yDk5vc8h63Jwdc

Desabafo de uma qawwi

# 4| O Apocalipse dos Corais

(4 mins de leitura)

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Após mergulhar na faixa com milhares de recifes e de ilhas continentais, permito-me uma pausa para que o cérebro absorva com clareza as cores do fundo do mar, luzentes como uma aurora boreal. Os corais vivem em colônias e fazem barreiras que sustentam o lar de diversos seres vivos. Será que os humanos compreendem a importância e a magnitude dos amiguinhos que habitam nestas águas? Sem pressa, percorro as avenidas e autoestradas marinhas, esbarrando com tartarugas e golfinhos, peixes e serpentes marinhas. Carlota baleia, incontestável rainha das águas, desliza na sua majestosa grandeza em busca de comida, enquanto dugongos acasalam pelos cantos recônditos do mar. Então, inesperadamente, caio num abismo. A maré torna-se escura, domada por gemidos. Criaturas moribundas, esbranquiçadas, soltam graves queixumes, numa lenta agonia. Baby-coral é um desses seres. Tão pequeno, está gravemente doente e os seus gritos não passam de apelos de socorro que se perdem nos ecos das ondas espirais do oceano. Ao lado de Baby-coral, jazem centenas de corais que sucumbiram à violência do calor.

– Nem sempre foi assim! – confessa Baby-coral tristonho, órfão de pai e mãe. Aos prantos, mostra-me através de um registo gravado no seu DNA, uma memória dos tempos em que vivia em ambiente de festa, quando eram todos saudáveis, antes da tragédia abater-se em suas vidas.

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Fonte: https://airis.life/bleaching-threats-to-the-great-barrier-reef/

Baby-coral era ainda pequeno quando a sua família e quase toda a geração foi saqueada durante uma captura ilegal. Os que restavam, se não estavam a morrer, rogavam aos deuses dos oceanos, por um milagre que os salvasse do apocalipse que descera sobre os recifes. É que nos últimos dois anos, metade dos corais haviam passado pelo processo de branqueamento (perda de pigmentos e de algas associados aos tecidos) e hoje, só sobravam pálidas sombras do que eles tinham sido um dia.

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Fonte: https://airis.life/bleaching-threats-to-the-great-barrier-reef/

Baby-coral e outros corais vivem em permanente pesadelo. Graças a queima de combustíveis fosseis e de outras coisas pouco sensatas, vieram as alterações climáticas que acabaram conduzindo ao aquecimento das águas e por fim, a catástrofe que agora dizima em massa os corais.

– Pobre Baby-coral. A minha alma se compadece. Que posso fazer por vocês?

Tem de haver alguma forma de reverter a situação. Sou recém-chegado ao planeta terra, mas ouvi dizer que alguns líderes comprometeram-se a reduzir as emissões de CO2, pese embora alguns presidentes como Ronald Trunfão, contra a lógica razoável, não querem este acordo.

E se eu pedisse aos meus superiores para intervirem? Não, não poderia, tal seria contra os princípios do meu planeta.

Baby-coral engole as lágrimas e tenta tranquilizar-me:

– Espere senhor, há outros humanos como você, que querem ajudar. Temos recebido visitas de pesquisadores, rumores correm de que estão a preparar e a testar laboratórios que poderão nos socorrer – é a primeira vez que noto alguma esperança na voz de Baby-coral – e se as temperaturas baixarem, quem sabe? Talvez haja um futuro para nós. Vá meu amigo, fale com os outros, interceda por nós! É possível encontrar um equilíbrio!

Anuo e deixo-o com uma promessa silenciosa, antes de começar a nadar de regresso à Terra. Sim, há uma chance de eles sobreviverem, se todos os humanos, biólogos, cientistas, líderes, organizações e pessoas individuais, fizerem a sua parte para amenizar os efeitos das alterações climáticas. Nado com a urgência da questão bailando nas falsas barbatanas dos meus pés.

Linan, a qawwi

Nota sobre este texto:

A Grande Barreira de Coral da Austrália, património mundial da UNESCO, sofreu um “colapso catastrófico” de corais durante uma vaga de calor em 2016, “uma ameaça à diversidade da vida marinha. Um terço dos corais de superfície da Grande Barreira morreu devido ao aumento das temperaturas. A Grande Barreira de Coral é o maior complexo de recifes de coral do mundo. Os recifes de coral representam menos de 1% do ambiente marinho da Terra, mas abrigam cerca de 2% da vida marinha. Se não se limitar a subida de temperatura estabelecido no Acordo de Paris “a Grande Barreira de Coral corre mesmo o risco de desaparecer” – In Diário de Notícias, 19 de Abril de 2018.

O que você acha sobre o tema? Deixe um comentário 🙂

 

Desabafo de uma qawwi

#3 | A síncope – o momento em que descobri que sou infiel

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Ao final de sexta-feira tive uma síncope. O beijo foi o gatilho, mas a causa maior residia no lento acumular de incongruências que estava a testemunhar nos últimos dias. Cheguei à terra faz pouco tempo, e quanto mais analiso, menos sentido encontro neste planeta. O uso excessivo de carros, por exemplo. É um paradoxo que escangalha-me o cérebro. Além de agravarem o sedentarismo, estas máquinas são altamente poluentes. Sempre ouvi dizer que a poluição inquieta os humanos. Pela quantidade de veículos que prolifera pelas estradas, eu diria que essa preocupação é tão grande como o dedão do meu pé de qawwi. Seria exagero concluir que os humanos são vítimas intencionais de si mesmos?

– Pára de reclamar, mãe! Hoje em dia não se faz nada sem um carro – explicou-me uma das minhas filhas. – além do mais, ter um bom carro é uma questão de status.

Status?

– Sim, mãe, status!

– Ah, status. – cocei a cabeça – Faz sentido.

Tinha que disfarçar, mas claro que não fazia sentido. No princípio, cheguei a pensar que o tal “status” fosse uma comida. É um conceito de difícil compreensão e na verdade, sigo sem entendê-lo. Será que significa vestir trapos feios, só porque são caros? Estar cercada de bens inúteis e sorrir como num outdoor terráqueo? Ou pior, costurar o rosto para mascarar as pegadas do tempo? Para mim isso tudo não passa de esquisitice. Ou então a minha inteligência qawwiana reduziu drasticamente com a viagem. Só pode.

– Mãe! O que se passa contigo? Nem pareces tu a falar! Sempre adoraste o teu mercedes e as plásticas que te rejuvenescem, qual é o problema agora?

A minha pretensa filha tinha razão. Mas ela não fazia ideia de que a figura diante de si não era a sua verdadeira mãe. Nem sequer era um ser humano. Era um ser alienígena, vindo de outro planeta, camuflado na mãe.

Para poder seguir a minha missão pela terra sem ser notada, principalmente depois da desastrosa aterragem em Maputo, teletransportei-me para dentro de um humano, em busca de um disfarce. Acabei assim no corpo e na identidade desta mulher. Nestes últimos dias, tenho sido esposa de um “empresário”, mãe de três “adolescentes”, “dona de casa”, com uma família cheia de “status”.

A minha filha lançou-me um olhar desdenhoso, pegou no telemóvel e foi perder-se pelas avenidas da cidade. Para quem nunca ouviu falar, o telemóvel é um dispositivo de comunicação que… não, esperem. Na verdade, o telemóvel é um órgão humano externo. Tão vital quanto os pulmões. Se quiserem causar um colapso à um humano, é só experimentarem arrancar-lhe o telemóvel. Difícil de imaginar, eu sei, mas já explico: enquanto no nosso planeta somos servidos pelas máquinas, aqui na terra elas é que são servidas pelos humanos. As máquinas escravizaram tanto os humanos, que até nos ritos sociais de confraternização, os humanos já não convivem. Apenas os telemóveis. Os humanos estão reduzidos à uma alarmante apatia. Mais recordam os zumbis do apocalipse tecnológico.

– Com licença, minha senhora – murmurou uma voz masculina, arrancando-me dos atribulados devaneios. Era o motorista lá de casa.

– Sim? Algum problema? – perguntei, vendo que o homem difundia aflitivamente a sua atenção para todos os cantos da luxuosa sala. Assim que percebeu que estávamos a sós, capturou-me e meteu os seus lábios carnívoros em cima dos meus. O meu peito trovejou de perplexidade e de nojo.

– Que raio está o senhor a fazer?

– Saudades tuas, meu docinho de coco.

– Docinho de coco? – a voz estava-me presa de pânico – eu sou casada, o senhor não sabe o que isso significa?!

– Ah meu docinho! Desde quando tal foi obstáculo para as nossas escapadelas? – Sussurrou com malícia, seus lábios feios e vingativos continuando a invadir a minha boca.

Foi nesse momento que me deu a síncope e perdi os sentidos, caindo no elegante tapete vermelho.

O planeta terra é um lugar cheio de regras. Uma delas, por exemplo, é que o casamento é um instituto sagrado, que obriga à estrita fidelidade entre duas pessoas. Talvez a dona deste corpo tenha um defeito de fabrico. Sim, é isso! Ela é um caso raro de avaria! Já imaginaram se de repente houvesse muitos humanos com uma disfunção assim? Não quero nem pensar.

@Linan