– Teste, um, dois – repito.
Primo o botão, a pontinha de luz vermelha do gravador cede.
– Tão rudimentar… achas que vai funcionar, Linan?
– Confio que sim, deste-lhe um jeito, tem de funcionar.
Volto a clicar o botão e ouço a minha voz repercutir pelo aparelho. Avanço com a gravação, deixando registada a mensagem:
Olá. O meu nome é Linan. Se este aparelho e o meu diário foram parar às suas mãos, significa que de alguma forma, perdi-me do meu caminho. Por favor, ajude-me a reencontrar-me. Tudo o que você vai ler é real. Foi o meu dia a dia, durante a passagem por esta terra. Poderia ter sido uma visita breve, não fosse a mutação, os vícios do corpo e da alma de humana, alongarem a jornada.
Deixe-me esclarecer: sou do reino de Stefanotis, que orbita numa dimensão distante desta. Tenho a pele trigueira, cabelo negro como o carvão vivo, que favorece os meus olhos azuis florescentes. Pareço bastante com você, ou seja, tenho o aspecto de um humano. Se estivermos no mesmo mundo, e caso esbarre comigo, ajude-me. Quem sabe você veja as coisas com mais clareza do que eu fui capaz. E caso me encontre, acorde-me, faça-me recordar. Disso depende, muito provavelmente, a esperança de toda a humanidade. Obrigada.
Vallen olha para mim, e num gesto inesperado, dá-me a mão. Afinal, só temo-nos um ao outro. E os inimigos também se abraçam.
– Será que vai ser doloroso?
– Espero que não.
Esfregamos as particulas de tamarino nos nossos pulsos. Pensamos no começo. Soltamo-nos da terra.
Mas a terra, no seu vazio, torna-se mais negra que o luto do meu peito. Isto não é o meu planeta. Mas também não é a terra.
– Acorda Linan!
Estou acordada. Mas não sei o que vejo ao redor, estas telas, estas velozes estrelas.
– Passaste da conta – continua a mesma voz, assustadoramente familiar.
Estico-me. E deparo-me comigo mesma. Sou ambas.
– Sim, eu sou tu. Deixa-me reorientar-te para que te reencontres Linan… tens de regressar.
– Um minuto – a minha mão trava-se no acelerado teclado flutuante – avancei? Avancei quanto tempo?
– Pelo menos um ano, Linan.
A minha mente guina com a mesma força de um meteorito, à medida que o resultado matemático desliza da minha boca, arrancando-me da suspensão. Aterro em frente à uma das telas.
– Um ano? Significa… oh! 30 anos do planeta terra?
– Precisamente.
– A esta altura, estarei atrasada?
– A esta altura já quase nada sobra.
Engulo em seco.
– Posso?
– O quê?
– Ver o que resta?
Ela observa furtivamente as telas.
– Compreendes, Linan, que tens de reorientar-te dentro desta janela, se não corres perigo de vida?
– Compreendo, mas preciso saber.
Deixo os meus dedos manejarem freneticamente o ecrã de uma das telas. Os meus olhos inundam-se de lágrimas, da força impetuosa que brota do meu peito ao ver a terra. A satisfação é tanta que o sorriso transfigura-se num desproporcional esgar.
– Eles venceram!
Os humanos. Estão felizes. Não há nuvens escuras pelos ares. Os mares são azuis como o céu. Eles se abraçam, sem discriminação. Todos eles. Descobriram que o amor não é só uma palavra, ou um sentimento. Descobriram que há uma razão para ele existir. Finalmente, os qlubs estão equilibrados! A minha outra eu aproxima-se, com as mãos escondias por detrás das costas, sugerindo que algo está a escapar-me.
-Lembras-te quando Vallen disse, Linan? Que existem duas variáveis? Pois, ele estava certo. Esta variável foi salva por antecipação. 30 anos atrás. Na dor, expostos diante das suas próprias fracturas, os seres humanos transformaram-se para melhor.
– Então porque é que disseste que não sobrou nada?
A tristeza que emana dela, estranhamente, é minha.
– Olha com atenção.
Ela desliza o dedo na tela, para que eu veja o que até então me estava a passar. Não são precisos mais de cinco minutos para que uma onda de terror atinja-me em cheio.
– O que é isto?
– Planeta Terra.
– Mas… parecem frívolos ikras?
– Esta é a dimensão de que Vallen falava.
– Como assim?
– Numa outra versão de si próprios, os humanos não aprenderam nada. Trinta anos atrás, perderam a oportunidade. Seus conceitos bélicos, egocêntricos e separatistas foram exacerbados. E isto abriu as portas para o que Kosi queria, o pior cenário… que é…
– Não digas mais – murmuro. É como se acabasse de receber uma bofetada.
De que lado a minha família ficou? Do lado dos humanos que havia aprendido, ou do lado dos que tão somente havia piorado?
– Reorienta-me, por favor, de volta ao começo!
– Estás preparada? Para começar do zero? Toda esta conversa, tudo o que viveste…
– Estou pronta.
– Ok. Então… até um dia.