A simpática humana com quem divido a casa, finalmente convenceu-me a sair para conhecer a “noite”. A música soava alta, os balcões abarrotavam de bebidas, e um adocicado fumo serpenteava pelos corredores. O recinto mais parecia uma gruta de segredos. As luzes minimalistas lá dentro faziam os diversos trajes cintilarem.
Considero-me uma qawwi razoavelmente inteligente e tenho assimilado com rapidez os hábitos humanos. Mas aquele cenário deixou-me abestalhada:
– Oh Fatinha, porque é que estas moças vestem pijamas?
Referia-me ao grupo de jovens semi-nuas que abanavam freneticamente os corpos, bem no centro do recinto. A contradição melindrava-me por completo.
– Disseram-me que este tipo de vestuário serve somente para a intimidade do sono, não para o convívio público! Afinal era mentira?
Fatinha reprimiu uma gargalhada, pese embora eu não tivesse percebido a piada.
Sentamo-nos num canto, e enquanto Fatinha fazia gestos no ar, eu ajustava o Sonda-M na orelha. O pequeno dispositivo permitia-me captar sinais dos qlubs, objectos importantes para a minha missão.
De seguida devolvi a atenção ao ambiente. Como é que as moças conseguiam respirar, sem sufocar em tecidos tão apertados? Infinito mistério, pois os sorrisos indicavam prazer descomunal no possível sofrimento. A meu ver, as jovens pareciam safiras à superfície, encontradas sem garimpo. E os homens à volta, ostentando sequiosos olhares, avaliadores dos potenciais tesouros. Muito estranho…
– A maioria destes gajos são pais de família que deixaram as esposas em casa, garanto-te – sussurrou Fatinha ao meu ouvido, antes de ausentar-se para atender uma chamada. Estava eu ainda a tentar alcançar o significado daquilo, quando um homem aproximou-se. Para nós qawwis, a estética nos traços dos humanos é neutra, mas pelo que percebi, podia dizer-se que aquele era um humano “atraente”. Captava muitos olhares femininos, à medida que deixava um rastro de aroma de basil e de origami lavado. Os seus olhos escuros faiscaram quando encostou-se ao sofá.
– Sou o Marcos. – informou, pedindo-me a mão para depositar um beijo – posso oferecer-te uma bebida?
– Não faço muita questão, mas agradeço.
O telemóvel no bolso do casaco do tal Marcos não parava de apitar. Ele sacou o aparelho e tratou de responder à uma mensagem antes de voltar a cravar-me o denso olhar, como quem afunda na imensidão do universo.
– Desculpa a curiosidade. Não és desta cidade, pois não?
– De facto. Nem sequer sou deste planeta.
Chegou-me aos ouvidos a sua gargalhada macia como algodão.
– Sem dúvidas! Linda como és, só podes ter vindo do céu. Um verdadeiro anjo!
Arregalei o sobrolho, contrariada.
– Anjo não! Quando muito uma qawwi.
– Qawwi? O que significa isso?
– Porquê importa?
– Importa porque és divertida e sexy demais.
O telemóvel dele continuava a afincar-se em nervosos bips.
– Não seria melhor atender as chamadas?
– Não é ninguém importante.
Foi nesse instante que senti um doloroso estampido no ouvido. O Sonda-M estava com uma anomalia. Ao invés de detectar pistas dos qlubs, estava a captar sinais de mentiras. Marcos inclinou-se, de modo a encurtar a distância que nos afastava e sussurrar:
– Neste momento estou a fazer algo muito mais interessante.
– E o que seria tão mais interessante? – perguntei ajeitando o minúsculo aparelho no meu ouvido – lançar-me essas suas observações generalistas?
Ele soltou mais uma gargalhada.
– Também sei ser bem específico. Olha, está muito barulho aqui, conheço um lugar mais tranquilo, gostavas de vir?
– Para quê?
– Para conversarmos mais à vontade e nos conhecermos melhor, só isso.
O Sonda-M voltou a dar um estalido, acusando a nova mentira. Farta das dores no ouvido, levantei-me e rodei nos calcanhares.
Fatinha, que, entretanto, já havia regressado, puxou-me para um canto.
– Homens players não, Linan. Esses são os piores!
– Desculpa?
– Está escrito na testa daquele tipo que é um player! Não viste a aliança no dedo?
Não tinha visto. Nem sequer entendia o que era uma aliança ou qual era o seu fim. Mas percebia que o termo “player” referia-se a jogador.
– Ele não disse-me que era jogador. Joga quê?
Fatinha riu-se admirada.
– Quanta inocência, filha! Não conheces o jogo da caça e do caçador? Da encruzilhada amorosa? Linan! O Player joga com o teu tempo, com o teu coração e com a tua paciência. Sabes aquele homem que tem uma, mas quer todas? Que roda pela cidade como um cão vadio, e faz da simplicidade do amor um jogo psicológico? Esse é o player. Fica longe dele, Linan! Há homens mais sérios por aí.
De facto, por aquele prisma, o tal homem player era uma criatura mais perigosa que os ikras do meu planeta. Todavia o cuidado de Fatinha era desnecessário. Sei que ela tinha esperanças que eu me interessasse por alguém, mas uma extraterrestre em missão de serviço como eu, não se dá à esses luxos. Pelo contrário. Abandona o qawwi que ama e não volta a apaixonar-se. Muito menos por um humano, espécie que sente volúpia pela desonestidade. Seria mais fácil o sol e saturno colidirem, do que eu envolver-me com um humano.
– Não te preocupes Fatinha – murmurei passando a mão pelo seu ombro. – Ficarei longe da espécie.
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