Outras maravilhas humanas

PEDRO PEREIRA LOPES: UM ARTESÃO DAS PALAVRAS NA PROSA CONTEMPORÂNEA

Maiane Pires Tigre[1]

1. Maiane Tigre – Para além de uma produção literária destinada ao público infanto-juvenil, você também é estudado por possuir publicações dirigidas para o público adulto. Dono de uma escrita versátil, abrangendo a poesia, o conto, e, por fim, incluindo-se o romance, consideramo-lo um escritor multifacetado, primeiro porque é capaz de investir na hibridez dos gêneros, além disso, possui uma rica capacidade de inovar ao aderir às mais atuais tendências da prosa contemporânea. Comente tais inovações na linguagem, verificadas, por exemplo, nas obras Mundo Grave (2018) e A invenção do cemitério (2019), afinal predomina o completo abandono das regras gramaticais, no tocante ao registro de nomes próprios com letras minúsculas, no início dos títulos, dos parágrafos, e após o uso do ponto de continuação. Haveria, pois, uma estratégia estilística adotada à la Oswald de Andrade, resultante de um diálogo intertextual, na tentativa de reafirmar o seu ultramodernismo?

Pedro Pereira Lopes As primeiras versões de “mundo grave” e “a invenção do cemitério” obedeciam ao convencionalismo tradicional, isto é, à gramática da língua portuguesa como a estudei, como a assimilei. Acontece que durante a minha estadia em Pequim, onde estudava, eu redescobri parte da minha africanidade, o meu lugar num mundo fora de Moçambique, fora da África, onde eu era “o outro”. Esta tentativa de aproximação com a África fora de mim me fez partir em busca de uma ancestralidade que, por inocência, eu acreditava que a detinha, como algo que se pode possuir. É a coisa de Saramago de sair da ilha para conhecer a ilha.

Eu gosto de crer que, em termos de técnicas empregues na série (que chamei de “trilogia absurda das minúsculas” – envolve, ainda, o livro de poesia “mundo blue”), a base foi este “disruptivo” e grosseiro “regresso às origens”, à origem da literatura africana, à oratura. Então, o processo de narração funcionaria em um esquema instintivo, quase um fluxo de consciência, onde o narrador chega a duvidar de si e comete erros durante o processo de contação (acontece em “mundo grave”), ao mesmo tempo em que a linguagem se transforma em um instrumento abstracto e subjectivo dentro do livro, no papel, sem obedecer às normas da gramática. Assim, a mancha gráfica, os elementos da pontuação e a maiusculização, por exemplo, obedeceriam a uma espécie de democracia ou liberdade natural da narratividade, em que se estabelece a oratura. À volta da fogueira, não temos como distinguir um Pedro capitalizado de um “pedro” em caixa baixa. Do mesmo modo que não a história pode ter múltiplos narradores, ser interrompida, ser comentada ou não usar o formato tradicional de contação.

            De qualquer das formas, eu não inventei a roda, fui o primeiro em Moçambique a escrever três livros em caixa baixa, claro. Mas tens o Suleiman Cassamo, por exemplo, que domestica a língua portuguesa em “O regresso do morto”. Há o Saramago, o Valter Hugo Mãe e o Rui Nogar, cujo único livro em vida, “Silêncio escancarado”, é feito de minúsculas. E em nada isso anula a sua poesia única.

2. Maiane Tigre – Por que você decidiu seguir a proposta de ruptura no gênero, ao adotar o romance policial como forma estética sobressalente no tecido narrativo da obra mundo grave (2018), e o gênero microcontos em O livro do homem líquido? (2021). Quais são as suas fontes/influências, nacionais e estrangeiras?

Pedro Pereira Lopes Eu nunca me considerei prosador ou poeta. Questiono até essa coisa de “escritor”. Eu vivo em uma relação com as palavras, com a língua, com o exercício literário. Hoje, considerando a moda dos conceitos, eu diria que vivo numa “relação tóxica” com a coisa de escrever. Eu gosto de escrever. É uma relação sadomasoquista, de prazer e dor, o deleite de escrever e a dor pela busca do texto perfeito. Assim, fruto de tal inquietude, de tal desafio em busca desse preenchimento que resulta do prazer e da dor, eu nunca me contentaria em escrever somente um género literário. Eu costumo dizer que não sou bom em nada como não se pode ser bom em tudo. A ser escritor, no lugar dos extremos baseados em géneros, eu prefiro ser um “escritor experimentalista”, uma espécie em trânsito constante, em direcção ao inalcançável. No fim, gosto da surpresa, da possibilidade do impossível, da descoberta e da tentativa.

“mundo grave” começou como uma novela e fui perdendo o controle. Desenvolveu-se como um fungo. Eu queria criar um personagem como o “Jaime Bunda” do angolano Pepetela ou qualquer outro que eu tinha conhecido com Ruth Rendell, Conan Doyle ou uma história como as Sidney Sheldon. O resultado foi algo que eu chamo de uma mescla de policial com o insólito maravilhoso, meio noir, meio horror. E isso era algo nunca antes escrito em Moçambique. Eu sempre admirei o conto e já tinha publicado alguns. O conto é uma espécie de haicai do romance. E isso faz do microconto uma espécie de haicai do conto. E eu tenho uma paixão pelo haicai. Então, um dia eu pensei em escrever contos-haicais, que seriam pequenos contos escritos em três parágrafos, mesmo a imitar o haicai, que tem três versos. Foi quando descobri o microconto ou a micro-narrativa. Achei, dentro desse encanto, “O livro dos abraços”, do uruguaio Eduardo Galeano, e fiquei fascinado. Depois de mostrar um rascunho dos microcontos ao escritor António Cabrita, ele recomendou-me a leitura de “Histórias de Cronópios e de Famas”, de Julio Cortázar, que está disposto como um conjunto de pequenas narrativas. Assim nasceu “O livro do homem líquido”. Eu acho que, no final, imitei sem copiar. 

3. Maiane Tigre – A obra mundo grave (2018) é uma forte evidência de quanto você sonda, entre as fendas da miséria social, as intercorrências de um grave mundo, subitamente revelado no homicídio, pela corrução do caráter, na fraqueza do espírito de pessoas más. No enredo, o insólito, a violência e o trágico se cruzam nas encruzilhadas da urbe, que se retroalimentam da falência das instituições. Nesse ínterim, demonstra-se, com notável vivacidade, as periclitantes faces da cidade flagradas pelos olhos atentos do narrador, os quais transformam um simples acontecimento em um crime macabro, repleto de suspense e envolto em brumas de mistério. Quais são os verdadeiros papéis da cidade, do insólito e do grotesco nessa narrativa?

Pedro Pereira Lopes Sou fruto tanto do ambiente rural como da cidade. A minha vida adulta, em particular, é uma vida de cidades, de trânsitos. Diferente do campo, a cidade parece um organismo mecânico, um formigueiro de homens e edifícios e movimentos. Não estou a querer dizer que há mais vida na cidade, mas nela a vida é um produto processado, os comportamentos e as ideias são fruto de um sistema utilitário que se parecem com os supermercados. A cidade, a sua fluidez, a sua frieza e a padronização, está mais próxima da metáfora da composição “Another Brick in the Wall”, do Pink Floyd, ou da modernidade líquida, de Bauman. Mas todos nós gostamos das cidades, mesmo os que nela não habitam. Então, a cidade acaba por fazer parte das nossas vidas, como parceiras, como amantes. Deve ser por isso que costumamos fazer músicas e hinos para as nossas cidades. No meu livro, a cidade em si, a cidade de Maputo, é a personagem principal, uma personificação de Sodoma e Gomorra. O Valete, músico português, diz que “a cidade é o cemitério dos vivos”. E eu concordo.

O insólito e o grotesco compõem o maravilhoso moçambicano. Por exemplo, existem relatos de determinados falecidos que foram avistados a vender pão nas ruas de cidades que não eram as de sua proveniência; ter que fazer uma cerimónia aos espíritos dos antepassados na inauguração de uma estrada ou ponte, para que não aconteçam [muitos] acidentes; a perseguição e decapitação de indivíduos albinos para o seu uso em rituais de enriquecimento, entre outras situações. E fica a questão, qual é a diferença entre o real e o imaginário? Em contexto moçambicano, não é fácil ter conclusões. A noção de realidade ou de ficção acaba por ser uma conclusão relativa. A Paulina “explora” isso em alguns dos seus livros. Em o “mundo grave”, não fica claro o que é real ou fantástico. O leitor [moçambicano], na base do que acredita, decide como interpretar o que lê, ou seja, não existe nada de positivo no romance.

4. Maiane Tigre – A coletânea de contos a invenção do cemitério (2019) demonstra a sua ampla predileção por temas voltados ao hiper-realismo social, calibrando, em sua contística, a confluência do trágico, referente a situações vividas, com a poesia extraída do cotidiano. Portanto, a arquitetura dos contos é construída mesclando a linguagem ornamentada da prosa poética ao gume cortante da palavra, expressando a tensão prevalecente no âmbito das hierarquias de poder. Além disso, outra tendência na prosa contemporânea é a flagrante permanência de problemas sociais que atingem as camadas populares, e certos atores ainda reféns da violência urbana ou da distribuição desigual de poder na contemporaneidade. Nesse ínterim, poderíamos afirmar que o elenco de personagens que participam deste jogo ficcional constitui a representação do povo moçambicano que se equilibra entre o hiper-realismo e o sonho?

Pedro Pereira Lopes O Professor Etelvino Guila, da Universidade Eduardo Mondlane, diz que sim, que representa. Mas eu não sei se concordo ou discordo, não discuto com académicos. A minha proveniência é humilde. “Humilde” é uma palavra eufemística que significa pobre. Ela é usada em contextos em que o ex-pobre parece ter pejo de usar a palavra pobre ou pobreza. Eu não nego. A minha família era pobre. Onde cresci, onde me adentrou a escrita, existia apenas pobreza. Então, tudo o que conheço melhor é gente pobre, é a penúria, é a fome, gente pouco ou não escolarizada, a crença no divino, que ocasionaria uma vida melhor; a luta constante, a descriminação económica e a ausência de oportunidades. São essas as minhas representações. Uma outra professora escreveu que os meus personagens eram os que viviam “à margem da sociedade”, os marginalizados. Não existe isso de viver “à margem da sociedade”, a sociedade é uma e única, mas estratificada, dual, desigual. Eu jamais escreveria sob o ponto de vista de um personagem rico ou branco, por exemplo, porque escrevo o que é real, o que conheço. Se o que conheço é o que vivi, o que vivo – o sonho, a esperança –, então escreverei sobre isso, não importa o contexto, pode até ser em ficção científica. Esta é a minha forma de protesto.

5. Maiane Tigre – Como você percebe a importância  de O livro do homem líquido, finalista do prêmio Oceanos 2022, para o conjunto de sua obra,  e extensivamente, para consolidar o quadro da literatura moçambicana contemporânea? De que modo ela pôde projetá-lo no cenário literário internacional e, por tabela, também permitir à literatura de Moçambique reconhecimento além-mar?

Pedro Pereira Lopes Fui também o editor de “O livro do homem líquido”, pela Gala-Gala Edições, editora que fundei em 2020. Era apenas um livro de cansaço, de descanso, fruto do meu “experimentalismo”, que eu queria editar. Não achei que fosse a chegar tão longe, que fosse a ser, de alguma forma, importante. Não tenho a mania de gostar ou desgostar dos meus livros, talvez por serem sempre diferentes um do outro. Este “O livro do homem líquido” fez o seu próprio percurso. Talvez vá representar alguma coisa, mas nos últimos tempos, não costumo criar ilusões, gosto de ver o curso das coisas. O meu maior medo é perder a habilidade de escrever. Já tive ambições de ser conhecido internacionalmente, mas hoje só quero escrever, escrever para os moçambicanos, que é o meu público primário, e para quem aprecia o que já escrevi.

Por conta do Oceanos, escreveu-me uma agência de escritores de Londres, interessados no livro, pode ser que dê em alguma coisa. Mas antes da nomeação eu já tinha sido contactado, também, por tradutores para o inglês e francês. Passam-se anos, não devem ter gostado. Tenho, ainda, livros editados em Portugal e Brasil. Já sou internacional, para a minha mãe. Se o livro, finalista que foi, fizer o seu percurso, estarei satisfeito. Por enquanto, está somente disponível em Moçambique.

6. Maiane Tigre – Quem é o poeta Pedro Pereira Lopes? Como foi a experiência de ter publicado o livro “fatia fresca de lua nova (2023)” em parceria com um dos mitos da poesia moçambicana, o poeta Armando Artur? Por que a escolha do gênero de poesia japonesa, haicai, para escrever retratos da vida e da natureza de Moçambique?

Pedro Pereira Lopes Não existirá um poeta Pedro Pereira Lopes. Não compro a ideia. Existe um escritor que escreve poesia. Foi através da poesia que entrei na literatura, os primeiros textos que escrevi. Naquele tempo, sim, queria ser poeta. Mas depois vi que existiam muitos poetas em Moçambique. E se fosse para ser “poeta”, que fosse para fazer alguma diferença. Então decidi fazer poesia para crianças, pois não tínhamos poetas para crianças. Conheci a Cecília Meirelles por via disso. O Quintana. E existia um livro muito bonito do Rogério Manjate, “A casa em flor”. Fiz dois livros de poesia infanto-juvenil. Eu sei escrever poesia e fiz alguma poesia bonita e mágica para os pequenos.

O poeta Armando Artur é um amigo que fiz no último ano. Estamos muito próximos e veja que o convívio entre escritores, em Moçambique, ficou uma coisa horrível. Somos ambos da Zambézia, e não se trata de regionalismo, mas os escritores, sendo seres isolados, preferem não jantar com o inimigo. Um dia, à mesa do bar – ando sempre a bolar ideias – perguntei ao Armando, tendo como referência alguns dos textos de seus livros, se tinha consciência do haicai. E ele me disse que sim. Perguntei-lhe se os tinha em número suficiente para compormos um livro às meias. E gosto bastante desta coisa de dois autores de gerações diferentes estarem a colaborar em algo.

Eu achei o haicai por acidente, pela mão do Paulo Leminski, e percebi que existia, na sua composição e espontaneidade, um exercício necessário para a minha madureza como artista. O Armando acha o mesmo, que algo de supremo reside na simplicidade do haicai. É um livro de pequenos poemas, mas imenso na sua intenção.


[1] Doutoranda em Letras: Linguagens e Representações (UESC). Bolsista FAPESP. Membro do Grupo de Pesquisa GpAFRO: Literatura, História e Encruzilhadas epistemológicas. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2240-325X. E-mail: maiane.tigre@hotmail.com. Esta entrevista é o resultado parcial da minha tese de doutoramento orientada pela profa Dra. Inara de Oliveira Rodrigues (UESC) e co-orientada pela profa Dra Sara Jona Laisse (Universidade Católica de Moçambique – extensão de Maputo).

Autor Pedro Pereira Lopes

Resenhas

Convocatória de bolsas – residências artísticas

Caros Leitores e Escritores,

Foi recentemente divulgada uma nova convocatória de bolsas do Programa África MED – MAEC-AECID 2023-2024. Ao abrigo deste programa, existe a possibilidade da realização de residências artísticas com a bolsa de estágios (AFRICA-MED Prácticas). Não será necessário ter um título universitário, mas o requisito é identificar uma instituição espanhola de acolhimento. A Embaixada da Espanha em Maputo pode ajudar com o processo de identificação de instituições no âmbito do seu trabalho artístico.

O período de candidaturas é de 24 Janeiro a 10 Fevereiro de 2023.


Toda as informações disponíveis e respectivos documentos se encontram no site da agência espanhola AECID: 

https://www.aecid.gob.es/es/Paginas/DetalleProcedimiento.aspx?idp=466

A Embaixada convida ainda A participar da Videoconferência Webex – Sessão Informativa sobre as Bolsas PROGRAMA ÁFRICA MED 2023-2024 no dia 26 de Janeiro às 10 horas.

Link: 

https://mauc.webex.com/mauc/j.php?MTID=me4e47089659965a45ab7f8936a46b58d

Em caso de dúvidas, por favor contacte para consultas e mais informações através dos e-mails: becasmae@aecid.es (AECID) ou emb.maputo@maec.es (Embaixada).

Imagem: Residencia Literaria 1863.

Fonte: Nosdiario

Outras maravilhas humanas

ALDINO MUIANGA: O ESCRITOR DAS GENTES ENTRE A TRADIÇÃO E A SUBVERSÃO FICCIONAL

Maiane Pires Tigre[1]

1.Maiane Tigre – Poderia classificar o conjunto da sua obra em fases, entre a produção de contos, crônicas e romances, considerando a preponderância de temas, estilos, e as marcas da tradição ou de ruptura presentes em seus livros, de acordo com o período abordado, estendendo-se da década de 80 até 2022?

Aldino MuiangaComo em tudo, há sempre uma fase incipiente no início de qualquer empreendimento. Existe uma fase debutante, de timidez e receio de fazer “as coisas mal”. Sabido que é que uma primeira obra pode ser a perdição do seu autor, sempre usei de cautela, no início da minha carreira literária.  Esta começou como já o disse, por diversas ocasiões, com a produção de poesia. O projecto frustrou-se, porque toda a minha produção se perdeu em inundações, que assolaram o bairro onde residia. Era uma espécie de aviso que o meu caminho real não era o da poesia.

    Até 1987, nada escrevi que se chamasse literatura. O meu empenho residia em leituras, em exercícios de leitura, quase doentios. Queria escrever “bem”, veicular as minhas mensagens, de modo claro, profundo, penetrante e dissuasor. Durante as minhas leituras, apercebi-me que na literatura “moçambicana”, em geral, as referências que se faziam em relação à nossa cultura africana e (moçambicana em particular) eram, diria, exóticas, folclóricas, como curiosidades para consumo de turistas e curiosos. Isso causava-me muita estranheza e tristeza ao mesmo tempo. Pouco ou quase nada mesmo se escrevia sobre “nós próprios”, o que estava na essência cultural do ser moçambicano e africano.

     Obviamente que antes da declaração da independência do nosso país produziram-se obras de muita relevância, mensagens de protesto e de clamor pela autonomia nacional, pela afirmação de uma identidade que era sonegada pelo colonialismo. Foram obras que marcaram o nosso panorama literário até à independência nacional, como já o afirmei. Tive o privilégio de crescer num meio suburbano e de exercer actividades clínicas em meios rurais. A experiência que adquiri naqueles universos conferiu-me o caudal de informações de que necessitava para iniciar uma carreira literária que seria, em simultâneo, uma simbiose do que aprendera dos livros, e do que seriam os meus próprios conhecimentos sobre as culturas regionais e tradições específicas do indivíduo moçambicano e, por extensão do africano. Era um trabalho de pesquisa que decorria de um modo espontâneo, porque era natural. Absorvia as informações que colhia de diversas fontes: dos meus pacientes, de chefes e médicos tradicionais, companheiros de trabalho e demais fontes derivadas de convívios. Encontrava-me face a face com a verdadeira cultura do meu país, a vertente ignorada e escamoteada da nossa identidade.

     Assim surgiu a necessidade de proceder a uma rotura com as linhas oficias de fazer literatuta. Eu tinha a minha “literatura” por fazer, aquela que se fundamentava no real, isto é, na vida verdadeira do povo verdadeiro. Quis distanciar-me dos paradigmas correntes e seguir uma linha original: a de ser um porta-voz das estórias do povo, sem que isso signifique petulância ou complexo de superioridade. Sentia-me na obrigação de fazer “diferente”, e essa diferença começou a manifestar-se nas minhas primeiras publicações.

     Durante aquela fase incipiente consultei e partilhei alguns dos meus contos com autoridades na esfera literária de Moçambique. As primeiras impressões foram de espanto e de encorajamento. Todos diziam:  “explora esse veio”, “os temas são originais”, “a voz das nossas avós está presente nesses contos”, “os teus contos são autênticos nkaringanas”. Não tinha como vacilar. Prossegui a produção de contos com vigor, imbuído pela certeza de que as mensagens tinham eco entre o público leitor; e não só, que havia representatividade nos anseios dos leitores em “encontrarem-se, identificarem-se e interagir” naquelas narrativas. Eram afinal, e finalmente, as suas próprias estórias. E, aqui, residia a rotura de que falas, a quebra de convenções, a percepção de que a Literatura era um domínio do Ocidente, e privilégio para consumo de castas “cultas e civilizadas”.  A minha era a recusa e combate ao estereótipo ocidental de que tudo o que é “africano é folclore”.

Como já o afirmei, os meus primeiros escritos foram contos. Assim o fiz, porque por algumas razões: a primeira sendo porque a experiência me ensinava que o conto é o gênero primordial e muito eficaz na veiculação de uma mensagem, de uma estória. Nós, africanos, somos contistas natos, por excelência. Isso está timbrado na nossa matriz genética. Comunicamos uns com os outros, através de estórias curtas, argumentamos através de exemplos quotidianos, de adágios, transmitimos conhecimentos através dos nkaringanas. Essa é a nossa forma de estar, de ser e de comunicar. 

      A segunda razão pela opção do conto era meramente pessoal: não tinha experiência de escrita que me colocasse à-vontade para a elaboração de textos longos. Tinha “medo” de escrever. Embora tivesse aquele arcabouço de leituras, não me sentia em terreno seguro escrevendo novelas ou romances. Preferi textos curtos, com mensagens condensadas. Um leitor ou analista atento pode verificar que nos meus primeiros contos não há diálogos, mas apenas descrições. Sentia-me retraído a colocar os protagonistas a dialogar, tecnicamente falando, encontrava-me manietado pelo medo de errar. Felizmente, com o tempo e com a aprendizagem fui vencendo aquele impedimento até chegar à novela e ao romance.   

   As temáticas sobre as periferias, assim designadas para inferir rural e subúrbios, são dominantes na minha escrita  por razões que têm a ver com a afirmação identitária de grupos sociais marginalizados. Ninguém fala do camponês ou do suburbano como indivíduo com carácter e dignidade. Procuro identificar os valores desse indivíduo e colocá-lo na tribuna de um cidadão,  que possui uma história, que detém valores das suas tradições e tem uma cultura que não é inferior a nenhuma outra. Vou-lhe dar um exemplo: em todas as sociedade existem narrações de violência doméstica e pública. Em Lourenço Marques as havia. Os autores desses eventos eram (os de violência pública, em particular) eram os chamados mabandido. Esses eram jovens que provinham do campo, (majoritariamente de Gaza e Inhambane)  e trabalhavam como empregados domésticos dos colonos, vítimas diárias de abusos físicos e verbais dos patrões. Outros eram operários de construção civil, trabalhadores das fábricas  ou casas de pasto, também vítimas de semelhantes abusos. Todos eram catalogados de incivilizados, criminosos à margem da Lei e das normas de civismo. Não me recordo de ter lido, vez alguma, algum relatório de investigação que tenha revelado a razão profunda, para a disseminação de episódios de violência protagonizados por aqueles indivíduos, em público, e nas suas residências. Havia um problema de desajustamento social, conflitos de culturas, para os quais não havia autoridade ou psicólogo atento em decifrar aqueles desnivelamentos socioculturais. Acreditava que existia (e sempre existirá) um território onde residem valores culturais no indivíduo, que as sociedades ignoram e repudiam como obsoletas e obscurantistas. São esses valores que em muitos dos meus contos procuro trazer à tona. É talvez, por essa razão, que alguns analistas consideram a minha obra em geral, como voltada para o tradicional. Não o nego, porque é aí onde reside a essência dos meus escritos: chamar a atenção para o respeito pelos valores que cada um de nós detém, independentemente da sua origem social, da sua cultura e das suas tradições. Os procedimentos daqueles ditos “criminosos”, mais não eram do que uma sublimação à carga de violência que lhes era infligida pelos seus patrões, pertencentes a uma “civilização superior e diferenciada”. Neste considerando, aconselho a leitura atenta do conto “Operação Djodjo”, do livro O galo ruivo (2022).

     Creio que para um melhor entendimento de uma estória, o estilo e a linguagem devem ser as mais adequadas e apropriadas à mensagem que se pretende veicular. O próprio cenário é fundamental para colocar o leitor no ambiente certo, pretendendo apresentar a estória no universo onde os eventos decorrem. Claro que, ao longo desta experiência, ocorreu uma evolução no uso da linguagem. Aprendi e aperfeiçoei determinadas técnicas da narração que me permitem usá-las como instrumentos para maior eficácia na passagem das mensagens. A escrita é um acto dinâmico: quanto mais se escreve, mais se aprende, e menos erros se cometem. O meu lema é: para cada estória o seu estilo e a  sua linguagem. Isto é fundamental, porque evita-se o ridículo do uso de uma fraselogia longa, desnecessária e desconexa para descrever um acto simples, e tornar complexo o entendimento de um evento. Gostaria de dar um exemplo: se hoje escrevesse o livro “Xitala Mati” fá-lo-ia com aquela simplicidade e aquele encanto que o livro desperta? Se tivesse escrito o romance  Contravenção (de 2008), em 1987, teria conseguido conferir-lhe aquela acutilância que hoje tem? Penso que o momento histórico e a experiência ajudam a definir as técnicas de elaboração do texto, o estilo e a linguagem em simultâneo, sem esquecer o momento espiritual e emocional do autor. Ainda iremos falar sobre isto um dia.

   A minha escrita não de limita a narrações de estórias sobre os meios rurais e suburbanos. Não há dúvidas de que aquelas são dominantes, mas não exclusivas. Temos o exemplo do romance “Contravenção”. Considero-me um escritor multifacetado, mas com timbre marcado pela tradição, pelo suburbano e pelo rural. Tenho crónicas publicadas em revistas nacionais e internacionais sobre temas que nada têm a ver com publicações semelhantes a contos ou novelas. E seria contraproducente fechar-me numa redoma, feito curandeiro de cubata a velar espíritos de antepassados e, nesse exílio, deixar a vida fluir no universo do mundo em que vivo. Não! Estou atento ao que me rodeia, ao que me preocupa e, sobretudo, qual o contributo moral e social que posso prestar à sociedade em que vivo, que mensagem posso transmitir sobre os valores de que cada um de nós é portador, e como usá-los para um melhor e mútuo entendimento e tolerância cultural. Sou um idealista por natureza e por formação.

2.Maiane Tigre – Do risível à profusão de temas utilizados, quais as distintas faces do escritor Aldino Muianga, isto é, o Aldino continua o mesmo da década de 80, com o seu livro de estreia Xitala-mati, de 1987, ou há uma substancial diferença entre a escrita do charrueiro Khambira Khambiray e o prosador inserido no cerne da literatura contemporânea?

Aldino MuiangaTem de haver diferença. Neste caso, uma grande diferença. Afirmei antes que o processo de escrita sofre gradações, existe uma evolução nos processos de redacção dos textos, na selecção dos temas e seu tratamento. Aqui, volto a dizer, os momentos emocionais também variam e determinam a qualidade do produto final, que é a narrativa (conto, novela ou o que for). De 1987 até hoje, beneficiei-me de uma transformação na visão do mundo e do universo em geral. As sociedades evoluíram em vários sentidos. E eu, como membro de uma sociedade, tive de me ajustar àquelas transformações e conceber uma nova visão do mundo. E é nesse mundo onde me inspiro e fotografo as minhas narrativas, com uma linguagem renovada, actualizada, e ao entendimento do leitor que me leia. Considero-me parte de uma sociedade que se transforma. É esse o meu posicionamento, o de não ficar por detrás da História.

     O charrueiro Khambira Khambiray foi o cartão de apresentação de um autor que pretendia estabelecer uma rotura dos preconceitos no modo de fazer Literatura, pela temática e pelo tratamento da linguagem, com tonalidades e impregnações do conto tradicional. Aquele “morreu”, e seu lugar nasceu o Aldino Muianga do “Xitala Mati”, autêntico, detentor de uma vontade de dar a conhecer ao mundo a verdadeira face da nossa identidade, como moçambicanos e africanos. Esse tem sido o estandarte na minha jornada, como um Escritor comprometido com o seu povo, com a valorização das suas tradições, da sua cultura, da sua identidade, no que isso significa, em termos de respeito e reconhecimento daquilo que sou na totalidade, no meu lugar de nascimento, na lingua que falo, nas minhas crenças, nos modos de inserção na sociedade e no modo como concebo o mundo e o universo.

  Repare que o que escrevo, de modo algum, pode ser considerado uma frente de confrontação contra quem quer que seja, ou contra os ditames doutras culturas. Longe de mim tal ideia. O que proponho nos meus escritos é apenas, e isso somente, respeito e reconhecimento das culturas populares, sejam elas rurais, suburbanas ou urbanas, meios que nos conduzam a uma harmonização e equilíbrio nas sociedades em que todos somos chamados a compartilhar experiências, sem pejos, nem descriminações.  Isso somente.    

     Nós, moçambicanos, somos uma sociedade multicutural, com uma riqueza e um colorido étnico e racial singular. Se, no meu caso, optei pela via de exploração do veio rural e suburbano, existem outros escritores que terão optado por outras vias, que é salutar. Todos contribuímos, cada qual dando o melhor de si, para fazer deste nosso país culturalmente multifacetado, um lugar onde cada um dos seus cidadãos se sinta parte e parcela de uma Nação da qual se orgulhe.    

3.Maiane Tigre –  Qual a relevância da cultura moçambicana no conjunto da sua obra? O conto é a pedra de toque de sua prolífica atuação literária. De acordo com Can (2015, p.11),“faz do gênero […] um lugar de permanente reinvenção.”  Como se dá essa reinvenção e de que modo consegue evitar a repetição ao longo dos anos, já que é dono de uma vasta produção, em torno de 19 livros, entre romances e coletâneas de contos, dentre os quais se destacam: O domador de burros e outros contos, (2015), A noiva de Kebera, contos (2016), Asas quebradas, romance (2019)?

Aldino Muianga – De acordo com muitos analistas literários, a minha obra tem sido uma referência em pesquisas sobre vários aspectos, nomeadamente, a simbiose entre o conto tradicional e o conto clássico. Naquele contexto, o conto é a forma mais eficaz de expressão popular, em uso nas comunidades, desde os tempos seculares. Como poderia eu inverter esse processo, senão seguir as suas dinâmicas e modernizar os meios de narrar? Para o povo, o conto é um estandarte na comunicação social. De passagem, posso dizer que em muitas aldeias do campo remoto existem competições de contos tradicionais. Assim se perpetua uma tradição secular baseada na formação de peritos no que tange à transmissão e perpetuação da História dessas comunidades.  O conto, sim, é uma pedra angular, o fulcro onde se articula a oralidade. Foi desta que as comunidades conheceram eventos do passado, dos conflitos entre etnias, de todos os eventos seculares arquivados na memória dos povos. Sem os benefícios dos registos grafados em arquivos históricos, aquelas memórias ter-se-iam perdido e esquecido nos túmulos, onde jazem os seus protagonistas e suas  testemunhas.    A criatividade é essencial em qualquer área de produção artística. A repetitividade instala-se onde não existe criatividade. Penso que existem sempre formas de criar novas situações, novos enredos, invenção de novos protagonistas, com diversas intervenções no texto. Isso é o que cria esse dinamismo no processo de escrita do autor. Este não pode ser estanque, à espera que os acontecimentos lhe cheguem à mão. A busca, a pesquisa de novas estórias é primordial na obra de qualquer criador artístico. Um Escritor é um artista por excelência. Nessa qualidade, ele capta sensibilidades e memórias; reinventa e reproduz, sonha e concretiza. Esse é o processo de reinvenção que em mim decorre ao longo da minha produção literária.  Gosto de dizer que um Escritor tem seis sentidos, sendo, o sexto, o da reinvenção do real.

4.Maiane Tigre – O mítico, a espiritualidade, o sobrenatural, a dimensão telúrica, a presença de espíritos convivendo com os vivos, são alguns dos ingredientes fundamentais na composição de suas narrativas. Portanto, qual seria a hermenêutica ou linha de leitura mais conveniente para interpretar as histórias dessas gentes, melhor dizendo, qual seria a sintaxe do sonho utilizada na arquitetura dos seus textos?

 Aldino Muianga – Nas culturas africanas, e a moçambicana não foge como excepção, a relação entre vivos e defuntos é intrínseca, presente e concreta. Existe, entre nós, a concepção de que os defuntos estão presentes na vida de cada um e determinam de modo subtil o deselance de eventos do quotidiano. São exemplos correntes nas famílias, e em indivíduos, em particular, a atribuição de fatalidades, de doenças prolongadas, de desemprego, de infertilidade e outros malefícios como sinais de intervenção de defuntos.

     A relação à que me refiro, manifesta-se pelo empenho dos vivos, em práticas de rituais de apaziguamento dos defuntos, aos quais os vivos se submetem e imploram pelo sua intervenção, para uma vida isenta de perturbações. O uso de amuletos, os rituais de invocação nos túmulos, os exorcismos nas cabanas dos magos, as práticas de autoprotecção contra o mau-olhado, são algumas das inúmeras práticas que o africano, de um modo geral, recorre para estabelecer aquela ponte entre si e os seus defuntos.

   Na minha prática clínica, testemunhei casos desta relação entre os meus pacientes, com os seus defuntos. Cito apenas alguns exemplos, que ilustram aquele compromisso entre vivos e mortos. Para mais detalhes, remeto o leitor ao livro “Hospital, contar clinicando, Volume I” a ser publicado em breve.

5.Maiane Tigre – Você acredita que poderia ser considerado um escritor da tradição, cuja escrita se circunscreve a um momento histórico específico do pós-independência, diretamente vinculada à Geração Charrua, um escritor da ruptura, que subverte o próprio estilo, ou se classificaria, justamente, como a intersecção desses dois momentos, tornando-se um prosador atemporal, que está além de fechamentos ou reducionismos estanques?

Aldino Muianga – Na minha obra está vincado o compromisso de seguimento de uma linha que se pauta pela narração de eventos ligados às culturas e tradições  nas comunidades do meu país. As tradições, as culturas, os mitos e todos os valores de espiritualidade sempre existiram, e são perenes. O que narro só pode deixar de ser novidade para quem anda desatento às dinâmicas das sociedades periurbanas e rurais. A literatura que ficção fundamenta-se nisso, no revolver da História das comunidades, independentemente do tempo onde ela (a História ou as estórias) possa ter lugar. Repare que no livro “A Noiva de Kebera” se descrevem eventos do período pré-colonial, como prova da atemporalidade da minha escrita. Não me cinjo a espaços estanques, como já o afirmei anteriormente. O que informa os meus escritos são fundamentalmente as culturas, as suas intercepções, os conflitos que esses cruzamentos geram, as soluções achadas para a conciliação destes universos aparentemente contraditórios. A rotura apresenta-se como a abertura de uma página inédita na linha temática, que privilegia o subúrbio e o campo como cenários onde desfilam protagonistas doutras culturas, que não as convencionais e catalogadas como  “superiores”.

6.Maiane Tigre – A figura da prostituta possui significativa centralidade no âmbito da produção literária moçambicana. Em Meledina ou a história de uma prostituta (2010), observa-se um retorno ao tempo colonial, na condição de romance histórico. Qual o enquadramento dessa obra, do ponto de vista da História de Moçambique? Este romance possui elementos que sedimentam a tradição literária do país, face ao papel transgressor desempenhado pelas prostitutas representadas na pena dos escritores da nova geração, como Rabhia, de Lucílio Manjate, e Shonga, de Pedro Pereira Lopes, personagens modelares da subversão?

Aldino Muianga – No livro em referência, a figura da protagonista Meledina simboliza o nível de degradação da Mulher, ela é a porta-estandarte de um exército de oprimidos pelo colonialismo na frente da exploração sexual. Naquele espaço e tempo colonial, a prostituição dir-se-ia institucionalizada, sindicalizada, um “bem de consumo oficial”, para as elites coloniais. “Meledina “ constitui-se como um valor que se assume como um simbolismo de dignidade como Mulher, mãe, e porque não? Esposa virtual do seu próprio opressor. A prostituição é um mal das sociedades, com desigualdades socioeconômicas, e Moçambique não foge a esse desiderato. Vivemos numa sociedade viciada onde impera a lei-do-mais-forte, na qual a Mulher assume um papel de serva, de sub-cidadã, de um instrumento avassalado por uma sociedade patriarcal.  É nesta corrente que alguns escritores do meu país focam algumas das suas produções sobre aquele problema e o seu impacto na sociedade. São sinais de protesto (e este é um dos papéis da Literatura) que, espero, tenham algum eco nos ouvidos de quem tem a responsabilidade de consertar os desconcertos deste País. 

7. Maiane Pires – Comente sobre a recente publicação do livro O galo Ruivo (2022), destacando as principais inovações, além de mencionar o mote primordial dessa narrativa. Quais são os projetos futuros voltados para sua carreira literária?

Aldino Muianga – “O galo ruivo” é uma colectânea de contos, que retrata o perfil sociocultural e económico dos habitantes do cosmos suburbano da cidade de Lourenço Marques e dos meios rurais. Naquela compilação, as narrativas denotam  uma nova dinâmica  na estruturação  dos textos, que se podem considerar como uma exploração doutros veios de ficção narrativa. Em alguns contos, o uso de metáforas e de trocadilhos confere um pendor poético original na linha de escrita a que habituei o leitor. Às vezes me pergunto se a poesia não estaria a ressuscitar dentro de mim… Continuo a escrever, tanto quanto possível, sempre à busca de novos elementos, com que enriqueça os meus escritos. Para o ano corrente, projecto publicar um romance, uma novela e uma colectânea de contos. Os livros já foram entregues ao Editor, para as protocolares valiações e processamento das burocracias pré-publicação.

Grato pela atenção.

Aldino Muianga

Pretória, 20 de Janeiro de 2023


[1] Doutoranda em Letras: Linguagens e Representações (UESC). Bolsista FAPESP. Membro do Grupo de Pesquisa GpAFRO: Literatura, História e Encruzilhadas epistemológicas. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2240-325X. E-mail: maiane.tigre@hotmail.com. Esta entrevista é o resultado parcial da minha tese de doutoramento orientada pela profa Dra. Inara de Oliveira Rodrigues (UESC) e co-orientada pela profa Dra Sara Jona Laisse (Universidade Católica de Moçambique – extensão de Maputo).

Fonte da imagem: Plataforma Mbenga

Outras maravilhas humanas, Resenhas

|Maravilhas humana| Txopela de Stewart Sukuma

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Imagem: SapoNoticias

No imaginário infantil, no trópico de Capricórnio, txopelar nunca foi, tão só, uma aventureira e arriscada viagem de alguns segundos ou minutos. Muito pelo contrário, é a realização de sonhos que exorcizam vontades recalcadas. Noutros tempos, as crianças se penduravam nos taipais dos Land Rover, dos Bedfords e Ifas, até nas bicicletas se boleiam aproveitando a distração do pedalante, para provarem ao mundo a sua agilidade e destreza.

A modernidade transformou os veículos, mas nunca o sentido da aventura. Hoje, txopelamos em chapas de outras latitudes. Carroçarias empilhadas e a determinação de uma vontade que perdeu a ingenuidade. As emoções e os prazeres, não se algemaram no tempo e, testemunham a sua longevidade. A verdade foi sempre a filha do tempo e a sabedoria a filha da experiência. Txopelar combina o espelho da alma para dar sentido as vivências e experiências de Stewart Sukuma.

A janela da alma habita no intelecto e, lá se encontram os sentidos. Todos ou alguns. Mas, só o cérebro percebe o que é transmitido pelos sentidos. As imagens, ainda assim, viajam no sentido inverso. Muito antes de qualquer transmissão, revelam a plenitude da natureza e a graciosidade de uma mulher miscigenada. Estas as imagens que combinam à memória, à sensualidade e a luta de um povo, de várias gerações, o clamor pela vida e pela luz, a força de todos estes tempos e outros que ainda estão para chegar.

Assim, como uma canção harmoniosamente bem tocada proporciona um prazer efêmero, uma imagem expressiva, abre as portas para um mundo de sonhos. A ideia pareceu simples. O tempo amadureceu e o txopela se reconfigurou. Ganhou sua identidade e transportou milhões de seguidores. Txopela deu boleia a lusofonia e entrou pelas nossas casas desregradamente. Ninguém desgostou. Pelas telas se transformou numa colmeia de abelhas que se deliciaram de um mel que soube a pouco. Agora regressa à conta-gotas.

Ainda juvenis aprendemos que as imagens são irmãs dos sons agradáveis. Esta aula deve ter interessado sobremaneira ao Stewart Sukuma. Ainda tacteava o seu mundo, o seu espaço. A adolescência empurrou para o sentido da audição. Privilegiou o que mais mexe com os corpos e menos com a mente.

Sukuma foi o promotor do txopela. Internacionalizou uma das expressões mais acarinhadas do país. Txopelando a tecnologia e a beleza genuína da paisagem e suas histórias, articulou como ninguém, o que de melhor este país teria para oferecer.

A música e as imagens, em movimentos ou fixas, são feitas para dar vida e harmonia ao tempo. O bom músico tem dois propósitos. Fazer da vida dos que escutam um tempo mais agradável e, pintar no nosso imaginário o txopela das emoções. O verdadeiro sentido da harmonia reside nesta combinação e seleção do que de melhor o nosso país pode oferecer.

Txopela palmilhou o país de lés-a-lês. Porém, perdeu-se de amores na Ilha dos poetas. Aqui neste espaço-tempo território onde as pétalas tem sabor a maresia, os espíritos desgrudam-se de árvores centenárias, escritores vendem suas almas e, os temperos, enfeitiçam visitantes desavisados. Muhipiti, também, vive txopelada nas ondas de uma onda que aquece o Índico.

Somos todos insulares e nos refugiamos no continente, procurando uma clave de sol que ficou tatuada na memória das paredes das imagens espalhadas pelos nossos corações. Vivemos txopelados pela modernidade de cores e luzes, de um vento que soprara para todo o sempre. Estas imagens são uma cumplicidade de sentimentos, de panorama da qualidade do mais moderno écrans televisivo, misturando em única imagem, o passado, presente e o futuro de forma exuberante.( X)

Jorge Ferrão

Lançamentos!, Livros, Opiniões

Literatura| Contos e crónicas para ler em casa Vol. II – Antologia | – Opinião

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Autores: Armindo Mathe, Baptista Américo, Énia Lipanga, Ganhanguane Masseve, Herminia Francisco, Izidro Dimande, Jaime Munguambe, Jessemusse Cacinda, Mauro Brito, Miguel Luís, Miller Matine, Nelson Lineu, Pretilério Matsinhe, Sadya Bulha, Sandra Tamele, Sara Jona, Tassiana Tomé e Teresa Taímo

Coordenação: Eduardo Quive & Mélio Tinga

Edição: Abril de 2020

Revista Literaturas

Baixe e leia o livro Aqui

Opinião

Esta antologia, que conta com a curadoria de Eduardo Quive & Mélio Tinga, é um projecto da Revista Literatas, idealizado para estimular aquela que é uma das principais aliadas nesta época de isolamento social: a leitura. O projecto decorre da publicação de um primeiro volume, bem recebido belos leitores, que em pouco tempo ultrapassou a faixa dos 1.000 downloads (encontre o primeiro volume Aqui).

Nós do diário de uma qawwi, tivemos a oportunidade de conferir os 18 contos e crónicas, de autores moçambicanos, neste segundo volume, todos eles singulares e provocativos, agregando no seu conjunto uma diversidade de temas e sentimentos. Passamos a explorar brevemente alguns deles, sem seguir necessariamente uma ordem cronológica:

Madala” (de Armindo Mate) é um texto leve, familiar, que irá relembrar as nossas vivências.

Ao longo da antologia encontramos ainda temas como a violência doméstica e relacionamentos abusivos, em “tu não vais sair de casa com essa roupa, minha mulher não pode vestir assim” (de Énia Lipanga); idas e vindas, perdas, e complexidades das relações afectivas em “o silêncio cintilante”, “a cábula” e “o que somos nós então”, de Hermínia Francisco, Isidro Dimande e Miller A. Matine, respectivamente.

Também encontramos reflexões sociais em contextos mais actuais, como por exemplo a crónica “um corpo crivado de balas” (de Jessemuce Cacinda) e “a revolução não será viralizada: assuntos domésticos e afectivos” (de Tassiana Tomé).

A sátira espelhada no rosto da nossa sociedade faz-se presente em alguns textos desta antologia como “o anão sobressalente” (uma brilhante proposta de Mauro brito), “há muitas lágrimas nos olhos de Sua Excelência” (de Miguel Luis) e o “bicho bicha” (de Nelson Lineu). Estes textos irão certamente trazer algum calor aos leitores, após as gargalhadas.

E que tal uma história de época, em “estilhaços, memórias de um combatente” (de Pretilério Matsinhe), uma descontraída reflexão sobre as consequências da nova tecnologia no quotidiano, em “Minuto 76” (de Sadya Bulha), ou ainda, uma incursão pela tradição oral, onde muitos irão identificar as suas próprias raízes, em “histórias com sabor a misericórdia: dar atenção aos antepassados” (de Sara Jona)?

A antologia traz ainda “fenestrada” (de Sandra Tamele), um conto de estilo bastante elegante na sua concepção, repleto de referências do mundo artístico; e “o meu “Surge et. ambula” em Chibuto” (de Teresa Taimo), um texto honesto, leve, que reflecte a realidade das redes sociais e que irá identificar muitos de nós. Este conto tornou-se um dos nossos favoritos, ao lado de outros acima mencionados.

A capa do livro e a diagramação são satisfatórias, embora visualmente a arte gráfica do primeiro volume pareça atrair mais a atenção do leitor. Nota-se pequenas gralhas na revisão de um ou outro texto, mas nada que atrapalhe a leitura prazerosa oferecida neste belíssimo projecto.

A nossa pontuação: 5 de 5 estrelas

Outras maravilhas humanas, Resenhas

Maravilhas humanas | A Vingança do Mítico Pangolim

Por Jorge Ferrão

Os nexos que se estabelecem entre os animais selvagens, em vias de extinção, e os esforços para sensibilizar sobre a importância de sua conservação, têm conduzido os organismos internacionais e as principais agências responsáveis pela gestão da fauna, a estabelecerem datas especiais para celebrar os pequenos sucessos na preservação destes animais. Todavia, parece cada vez mais evidente a existência de uma preocupação em relacionar o consumo de diferentes espécies de animais, nomeadamente, cobras, morcegos, ratos, escorpiões, lagartos e pangolins, com as várias epidemias e pandemias, que criam um desassossego às economias e às sociedades, um pouco por todo mundo.

O pangolim (Manis Temminckii) tem, também, agora um dia especial, 15 de Fevereiro. Deste modo, Moçambique e o mundo celebram os poucos pangolins, ainda vivos, e os milhares que foram sacrificados e que deixaram de dar o seu contributo aos diferentes ecossistemas e às economias agrícolas familiares.

Desde o começo desta semana, especialistas, estudantes, amantes da fauna, curiosos e, até, leigos, tem a oportunidade de visitar um dos mais míticos e cobiçados animais da nossa fauna, por vezes tão descuidada e perseguida, outras vezes, tão relegada ao abandono e ao seu próprio destino. Estamos em festa e celebramos o pangolim.

Pangolim, a espécie mais ameaçada do mundo

Em 1999, a legislação moçambicana estabeleceu o pangolim (Manis Temminckii) como uma das espécies protegidas, e cujo consumo e venda foi vedado. Entretanto, esta proibição apenas foi decretada pelo CITES (Convenção sobre o Comercio Internacional das espécies em perigo de Extinção) em 2017. O pangolim tem sido uma das espécies que, à semelhança dos elefantes e dos rinocerontes, tem sido, invariavelmente, traficado e já colocado como uma espécie em vias de extinção no país. O pangolim caminha, assim, para um precipício iminente e sem retorno.

O comércio ilegal do pangolim aumentou consideravelmente desde 2008 em África e, um pouco por todos os relatórios mundiais de preservação da fauna, os dados confirmam o tráfico de, pelo menos, um milhão (1.000.000) de pangolins para China e Vietnam, os países que mais consomem e influenciam o contrabando dessa espécie na ultima década, porém, este numero foi já ultrapassado apenas num único ano, isto é, em 2019 com cerca de mais de 1.200.000. Aliás, as mesmas redes de contrabando que operam no tráfico de marfim, cornos de rinoceronte e madeira, são as que, aproveitando-se de esquemas de suborno e corrupção, traficam pangolim vivo, congelado ou as suas escamas as toneladas.

Estas redes melhoraram, inclusivamente, o seu modus operandi, através do uso de redes sociais como o Facebook, para anunciar a venda de seus produtos e estabelecer cadeias de preço.

O tráfico se justifica e intensifica pelo facto de as escamas serem utilizadas para o “tratamento” e prevenção de várias doenças e patologias, nomeadamente, a disfunção sexual, as doenças cardíacas, câncer e até as deficiências de lactação da mulher. Os médicos mesmo na China rejeitam estas propriedades mas as farmácias continuam a vender aos seus clientes. Não obstante, as crenças continuam mais fortes do que as evidências científicas e o número de usuários não pára de crescer.

Se, por um lado, temos estas pouco provadas e testadas evidências de propriedades medicinais, que geram alta demanda, por outro lado, continua preocupante o consumo da carne do pangolim, muito apreciada na restauração, nos principais restaurantes de luxo na Ásia. Em determinados restaurantes, o prato de pangolim, pode chegar a um custo aproximado de 500 dólares norte americanos ou equivalente. Aliás, nestes locais, o animal é vendido ainda vivo, e é degolado na presença do cliente para que este possa também comer ou beber o sangue.

Entre a superstição e a verdade

Ao longo de milhares de anos, foram identificadas oito (8) espécies de pangolim nos continentes asiático e africano. O pangolim é um mamífero escamoso da ordem Pholidota, por sinal a única espécie existente, também, designada Manidae, que possui três géneros.

Na Ásia, o pangolim está quase extinto e em alguns países desapareceu ainda no século passado. Em África, ainda, são encontradas quatro (4) espécies de Manis, nomeadamente, Phataginus, Smutsia, Tricuspis e Temminckii, espalhadas um pouco por todo o continente. A espécie Temminckii, eventualmente a mais representativa, pode ser encontrada na África Austral, Oriental e até na região do Corno de África, para além do Norte de África. As restantes encontram-se na África Central e Ocidental.

Estes mamíferos chegam a pesar entre 1,5 quilos até os 20, 25 quilos ou mesmo 35 quilos. Porém, em média, eles possuem entre 3,5 a 10 quilos, e podem ser encontrados em todo Moçambique, próximo das termiteiras e ou em locais cuja presença de formigas seja abundante.

O pangolim consome cerca de 190 mil formigas, por dia, o equivalente a 70 milhões de formigas, por ano. Lento, e que vive enrolado no interior destas termiteiras, o pangolim é considerado, pelos agricultores, como o mais eficaz controlador de pragas e térmitas que devastam os campos agrícolas do sector familiar.

Com a língua que é mais comprida que o próprio corpo, o pangolim tem um vasto conjunto de benefícios para o ecossistema e reduz, igualmente, os habitantes dos morros de muchém, que são devastadores para os agregados familiares, que sofrem com os efeitos das térmitas até no espaço habitacional, apodrecendo, de forma precoce, os aros das portas, das janelas e até as estruturas das casas.

O pangolim é mítico e gera sentimentos obscurantistas e da mais pura ignorância. No nosso país, ele tem diferentes nomes. No norte do país, o Pangolim é designado Ekha, na região de Tete o nome é Xiphalualo, no centro, Manica e Sofala é conhecido por Xikwari e, no sul, por Halakavuma. O seu surgimento suscita controvérsias e diferentes interpretações. Acima de tudo, ele é o mensageiro e tanto pode anunciar a desgraça, como a bonança. No Norte de Moçambique, a chegada do pangolim representa uma época de chuvas regulares, excelentes colheitas e um ano de muita prosperidade. No Centro, Idem. Porém, no sul, a chegada do pangolim anuncia desgraças, períodos de cheias, secas e várias pandemias. São os curandeiros, regra geral, aqueles que são chamados para interpretar a mensagem e comunicar os conteúdos ao resto da população.

Se, por um lado, o pangolim sofre do obscurantismo e de ignorância, por outro, é vítima de arrogância e de ganância desenfreada. As pessoas tem medo de se aproximar e de segurar as suas escamas, e são educadas a nunca olhar de frente para este animal. Aliás, continua célebre a preocupação de que tocando no animal, os casais terão três filhos.

Mas tem sido a ganância o maior mal de que o mamífero sofre. 2019 foi o pior ano no tráfico do pangolim, em Moçambique e no mundo. Em Hong Kong foram descobertas 8 toneladas de escamas e mais de 1000 pontas de marfim, enquanto na Malásia foram descobertos 3 mil toneladas de pangolim congelado e mais de 400 quilos de escamas. Em Singapura, mais de 24 toneladas de escamas foram descobertas, de forma sucessiva. Todo este volume se destinava à China e ao Vietnam.

As rotas envolviam diferentes intermediários e diferentes países. Em média, 159 rotas diferentes foram usadas pelos traficantes entre 2010 e 2015, com médias anuais de 24 toneladas, ou seja, 1,5 milhão de pangolins abatidos.

A Vingança do pangolim

A vingança do Pangolim poderia ser o nome de um filme de ficção, com um roteiro previamente estruturado e com películas gravadas em diferentes sites e continentes. Porém, não é ficção e nem pura e ingénua imaginação. É uma tragédia anunciada. Estudos mais recentes, ainda em fase de pesquisa, conclusivos ou não, indicam que o consumo do pangolim pode estar associado ao mortífero vírus do corona, que desgraça a China e retira o sono e o sossego de todo mundo.

Caso se confirme que o pangolim é o verdadeiro hospedeiro do coronavírus, uma nova atitude e postura terá que surgir em relação ao pangolim. Importa referir que estes e outros animais selvagens são portadores de diferentes vírus e que novas estirpes podem desenvolver, escapando-se das defesas do organismo humano e apanhando de surpresa o pacato cidadão. Ultrapassa a fasquia dos 1000, o número de vítimas e, já se superou o número de vítimas do vírus das aves (SASR) que teve o seu epicentro na Ásia e que, por sorte, não gerou efeitos mais devastadores no continente africano.

Enquanto isso, celebremos o pangolim e todo o misticismo que ele representa nas nossas vidas e nos nossos espíritos.

Cinema (Filmes / Séries), Resenhas

Cinema | Resgate – um covite à reflexão social |Opinião

 

resgate posterTítulo: Resgate

Direcção: Mickey Fonseca, Pipas Forjaz

Elenco: Gil Esmael, Arlete Bombe, Rachide Abdul, Laquino Fonseca e Tomás Bié

Género: acção; drama

Ano: 2019

Sinopse

 

“Resgate centra-se na história de Bruno, que quer mudar de vida depois de ter passado quatro anos na prisão e conhecer finalmente a filha bebé que partilha com Mia. Tenta encontrar, primeiro sem sucesso, um trabalho como mecânico, a profissão em que se especializou. A tia, irmã da sua recém-falecida mãe, arranja-lhe um emprego numa garagem. Mas este novo plano de vida cai por terra quando, sem aviso, o banco ameaça despejá-lo da casa da mãe se não pagar o empréstimo, por ele desconhecido, que ela contraiu antes de morrer. E é aí que vai ter de voltar ao mundo do crime” In O Público

Opinião

Resgate é um filme independente moçambicano, produzido pela Mahla Filmes. Estreou no dia 18 de Julho em Moçambique e foi este mês (Agosto) exibido nos cinemas de Portugal. Pese embora a estreia tenha sido há pouco, a produção do mesmo iniciou já há alguns anos. Ainda lembramo-nos perfeitamente da campanha de crowdfunding lançada há 3 anos, para apoiar o filme. A mesma despertou a atenção e o interesse dos moçambicanos, perante a ânsia que há por mais produções cinematográficas no país. Por esta e outras razões, nós da tripulação do diário de uma qawwi ficamos muito contentes quando o filme finalmente estreou.

Diferentemente de algumas propostas recentemente apresentadas, Resgate não pretende brincar ou testar a paciência do público alvo. Numa mistura de acção e drama, a película é efectivamente bem conseguida, tanto nos aspectos visuais, como no apelo que faz à reflexão social. Há uma extensa carga dramática durante todo o longa, onde problemas acentuadamente conhecidos na socieade moçambicana, como o desemprego, o aceso à habitação, e a discriminação são explorados.

O filme é de certa forma polémico perturbante. Aborda o mundo do crime e da violência, usando como pano de fundo a triste realidade dos raptos que em determinada altura assolaram o país. A arte gráfica da capa é de louvar. Os diálogos e a narrativa são bons, embora em alguns momentos subestimem o telespectador, criando e desvelando informação que no fim, acaba por tornar-se inútil na construção da trama. Há um trabalho requintado nas cenas de luta, no som, e na trilha sonora. Alguns aspectos técnicos poderiam ser refinados, como os efeitos de “fade out”, os quais poderiam perfeitamente ser dispensados. A interpretação dos actores é soberba. O actor que dá corpo ao protagonista Bruno, usa a linguagem corporal de forma eficiente, capaz de transmitir, muitas vezes calado e só pelo olhar, o espectro de emoções conflituosas que carrega o seu personagem.

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Gil Esmael em Resgate (Bruno) – imagem: Blog Mbenga

Em conclusão, trata-se de um filme nacional moçambicano bem escrito e dirigido, o qual deveria incentivar o investimento no cinema, servindo como exemplo para outros projectos. Confira o trailer:

A nossa pontuação: 4 em 5 estrelas

Desabafo de uma qawwi

#28| Pode o Estado obrigar-me a evacuar em caso de emergência?

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Imagem: causa operaria

Uma das minhas maiores dificuldades continua a ser o sono. Tornou-se necessidade biológica. Sabe muito bem que dependo dele. E mesmo assim, tem a mania de adiar-se. De deixar-me no abandono. Quando isso acontece, normalmente pego no livro da cabeceira, ou então ligo a TV, a qual esta noite acabei por optar.

As notícias reportam mais um desastre natural. Céus quebrados de cinza, cidades turvadas de vento, águas galopando com fúria pelas alturas e submundos, puxando tudo o que é vida para o breu da morte. Dói o meu coração. Como se atravessado pelas lâminas das arraias que lutam por alento.

O país onde estou, também já sofreu este tipo de desastres. O rescaldo dos mesmos deixou-me com alguns questionamentos, os quais esta noite voltam à tona: a ajuda que o chamado Governo deve prestar aos cidadãos. A eficácia das evacuações, quando de carácter obrigatório.

No meu planeta, isto nunca poderia ser questionado. Aquando da terrível queda da cortina de vidro, por exemplo, bastou os trombones dispararem com a comunicação do Conselho da Unidade, para os qawwis obedecerem a recomendação de ficarem em casa. Somos um só, e a voz do nosso rei, nunca contrariou a nossa própria vontade. Pelo menos até aquele tempo.

No planeta terra, entretanto, as coisas funcionam de forma diferente. Para conviver em sociedade, os homens abdicam um pouco da sua liberdade. É tudo institucionalizado e é preciso que os direitos e deveres estejam claramente definidos e proclamados. Aliás, é essencial, porque grande também pode ser a tirania. É neste sentido, que o direito ao domicílio e residência é um direito “fundamental”.

Em casos como este, de emergência ou de perigo de vida causado por calamidades naturais, julgo que deve olhar-se por um lado para o direito dos cidadãos a permanecerem no seu domicílio, e por outro lado, a responsabilidade do Estado de proteger estes mesmos cidadãos.

Em alguns países, existem leis que permitem explicitamente evacuações forçadas em caso de emergência. Acontece, entretanto, que a implementação desses esforços tende a ser complicada. Às vezes, as pessoas não respondem às medidas de evacuação. Pelas mais diversas razões. Algumas não recebem a informação. Outras, tem receio de abandonar as suas casas e os seus bens. Algumas talvez já tenham enfrentado situações semelhantes e julgam que conseguirão sobreviver a mais uma. O problema é que estas pessoas podem, mais tarde, precisar efectivamente de socorro, situação que poderia ter sido evitada.

Que direito deve prevalecer? Mesmo estando em perigo, posso optar por permanecer em casa? ou o Estado pode usar da força para tirar-me de lá? Olhando para Moçambique, por exemplo, quando afectado pelo ciclone Kenneth, o Governo e as agências de ajuda disseram que 30 mil pessoas foram levadas para locais seguros e que um total de quase 700 mil estariam em risco. Foram criados 20 centros de evacuação em Pemba, mas foram necessários aviões, pois muitas das áreas afectadas não eram acessíveis por terra. In Jornal o pais.

Reportou-se, ainda assim,  que algumas pessoas recusaram-se a abandonar as suas casas.

Alguns estudiosos humanos argumentam que usar da força para tirar alguém do seu domicílio, sem um processo legal, constituiria a violação de um direito fundamental. O documento chamado “constituição da República” em vigor em Moçambique, diz que o domicílio do cidadão é inviolável, salvo nos casos previstos na lei. A entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade, só pode ser ordenada pela autoridade judicial competente, nos casos e segundo as formas especialmente previstas na lei.

Ora, neste mesmo documento a que me refiro acima, fala-se dos estados de sítio e de emergência. Estes podem ser declarados, no todo ou em parte do território, nos casos de agressão efectiva ou eminente, de grave ameaça ou de perturbação da ordem constitucional, ou de calamidade pública. Nestas situações, pode ser suspenso ou limitado o exercício de algumas garantias e direitos constitucionais. O Governo pode, por exemplo, tomar algumas medidas restritivas como a obrigação e permanência do cidadão em local determinado.

Desta forma, parece aceitável que em caso de declaração de estado de emergência, o Governo tenha a prerrogativa de forçar a evacuação. Mas como tal depende de um processo fundamentado, o mais importante antes de qualquer medida forçada, é a antecipação e conjugação de esforços, a disseminação de informação e sensibilização dos cidadãos. Afinal de contas, estamos a falar do bem mais precioso que é a vida. É necessário todo o cuidado. E todas as medidas e prioridades devem ser para assegurar a preservação desta mesma vida.

… respiro. Desligo a TV. A noite quente arranca da lua um intenso gemido. Todos nós estamos sujeitos às forças da natureza. A qualquer momento, podemos enfrentar uma situação de contratempo. Ao pensar nisso, pego numa caneta, pois acaba de surgir-me uma outra questão. Será que agora, como humana, estou equipada para enfrentar uma situação de emergência? Será que, por exemplo, tenho tudo em casa para, em caso de necessidade, aguentar-me uma semana sem ir às ruas?

Desabafo de uma qawwi

#27| Escolha um trabalho que você ame e não terá que trabalhar um único dia da sua vida

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Imagem: The International Educator

Nos últimos meses, encarar a vida como humana parece-me uma tarefa mais aceitável. Às vezes ando pelas ruas, absorta nos meus pensamentos, ardendo na tal melancolia, esse manto que se agarra a quem caminha só. Outras vezes, caminho mais atenta. À procura de sinais escondidos da missão que falhei. Quem sabe haja algo no semáforo fechado, na mulher de mão estendida, ou no andaime suspenso.

Há momentos em que busco tão-somente um rosto amigo. Nessas alturas, sou capaz de ver Will. No rosto do vendedor de jornais da esquina, por exemplo. Ou no simpático vizinho que dispensa alguns segundos das suas manhãs para cantar-me os bons dias. À medida que o tempo passa, eu aprecio esta memória viva dentro de mim. Aceito-a.

Todavia, há outros aspectos da vida humana que são praticamente insuportáveis. Não poder teletransportar-me é angustiante. Não tolero andar de carro, por isso a bicicleta acaba sendo um meio termo. Custa-me habituar-me as estranhezas do corpo humano. Quantas vezes acordo a meio da noite, com impetuoso calor? Que dizer então quando acomete-me uma terrível dor de cabeça? Ah, a dor de cabeça. Essa espanstosa novidade.

Em momentos de ansiedade, deixo-me sentar ao luar, entre as árvores do quintal. É assim que resolvo os meus conflitos. A olhar para estrelas, sem pressa. Permitindo-me lembrar que além delas, há muito mais. Um dia, quem sabe, eu volte ao meu planeta. É essa esperança que me consola.

A dor de cabeça começa a ceder. O stress por causa do deadline desaparece. A situação, subitamente, parece-me ridícula. Eu, Linan, stressada por causa de trabalho? Solta-se de mim uma morna gargalhada.

Algo que causou-me admiração logo que cá cheguei, foi o tempo reduzido dos humanos. 70 entre 80 anos. Essa é a média geral de vida. E mesmo assim, esta espécie passa a maior parte do tempo a trabalhar. Eu até compreendo. O sistema não permite que seja diferente. E ter um trabalho, chega a ser uma grande dávida. O que eu não compreendo, entretanto, é como tantos humanos deixam que o trabalho os frustre, sugue a vitalidade. Onde está benefício nisto? Como é que milhares de pessoas conseguem estar ao serviço de empresas e de empregadores que não valorizavam o seu esforço, nem o seu tempo? Como é que conseguem trabalhar em algo que abominam? É aterrador. E sabem porquê? Porque hoje, como humana, não tenho outra opção senão trabalhar. No princípio, achei que não fosse capaz. Mas aos poucos, a solução desvelou-se. Lenta e infalível.

Eu falo muitas línguas. Mais de quinze. Assimilei-as como quem bebe água, quando ainda era qawwi. O que eu não sabia, é que isso podia converter-se em dinheiro. Foi uma boa surpresa descobrir que ensinar outros humanos, é um trabalho comum neste planeta!

Comecei por trabalhar com crianças. Estar com elas era quase como regressar a Stefanotis. E não demorou muito para depressa começarem a surgir vários pedidos distintos. Queriam que ensinasse adultos. Que trabalhasse com umas tais “instituições”. Passei a oscilar entre “intérprete”, tradutora” e “educadora”. É engraçado como no planeta terra podemos ser várias coisas ao mesmo tempo. Isso fascina-me. O novo trabalho obriga-me a viajar com frequência. Quer dizer, andar pelo mundo e conhecer pessoas, experimentando a terra com olhos de humana, não é de todo uma obrigação. Quando muito, um acto de diversão.

“Escolha um trabalho que você ame e não terá que trabalhar um único dia da sua vida”. Disse Confúcio, um pensador e filósofo. Colei esta frase na parede do meu escritório em casa. É a prova da sabedoria humana.

O mais importante não é o dinheiro que estou a ganhar. As utilidades para ele não são tantas. A forma como o trabalho está a transformar-me sim, é fabulosa. Diminui os vácuos dentro mim, transformando-os em luminosos jardins. Em suma, o trabalho faz-me sentir, pela primeira vez, curiosidade, e até uma pontinha de alegria em ser humana.

– Oh mãe, tenho mesmo de ir? – pergunta uma voz firme e meiga. Érica surge na varanda. Coloca a pomposa mochila às costas, lança-me um olhar desgostoso – raramente estou contigo… um fim de semana é muito pouco!

Levanto-me da grama e ajeito a gola do casaco da minha filha.

– Por mim ficavas aqui o ano todo meu amor, só que o teu pai vai chatear-se se eu não for deixar-te. E se no próximo feriado formos passear? Podíamos ir acampar na praia, como fizemos na páscoa, o que achas?

Érica agita-se com os olhos saltitantes de excitação.

– O pai também vai?

– Só nós duas, meu amor.

Indignada, e como forma de protesto, ela saca os headphones cor de rosa do bolso e os mete nos ouvidos.

– Tu e o papá são uns chatos…

Acompanho a minha filha até a casa do pai. De táxi, a rota demora cerca de 15 minutos.

No portão da vivenda, Will está com uma mulher. Ela despede-se dele de forma bastante afectuosa, antes de enfiar-se num vistoso mercedes.

O meu coração bate mais depressa. Faz tanto tempo que não vejo aquele homem. Deixou a barba crescer. Parece mais velho. Tal como eu, ele também tem um trabalho. Sempre teve, pese embora eu só agora compreenda esse fenómeno na sua plenitude.

– Entra, Linan.

Mal reconheço a sua voz. Há alguns meses eu disse que queria o divórcio. Longe de imaginar que com isso, abriria as portas para a chegada de um estranho. Como quando uma árvore caí. A raiz, quem sabe, reaaproveite-se. Mas ela, jamais será a mesma.

– Senhorita Érica, depressa a lavar as mãos para vir jantar, faça o favor…

– Sim paizinho, mas não te esqueças que não tenho mais seis anos, faça o favor você também! – reclama Érica correndo pelas escadas, as botas de couro ressoando pelo soalho.

– Anda cá uma reclamona… – comenta Will, debruçando-se sobre a mesa onde estão espalhadas várias folhas gigantescas, réguas e esquadrões. Will procura algo. Se calhar o lápis encaixado na sua orelha.

– Will…

– Sim? – ele ergue a cabeça. Nos seus olhos já não há o brilho que a qawwi em mim conheceu um dia. Neles, somente uma interrogação – ah… a papelada. O advogado prometeu que até para semana finalizamos tudo, não te preocupes, estamos quase.

– Não era isso – respondo constrangida. – O lápis… – faço um gesto indicando a orelha.

Will encontra o lápis. A gargalhada que deixa escapar, floresce como uma primavera, e deixa-me mais à vontade para concluir:

– És um pai exemplar Will. Estás a fazer um bom trabalho com a Érica, ela é uma menina incrível. É isso que queria dizer.

Ele parece confuso.

– Estamos os dois, certo?

Respiro, anuo e levanto a mão.

– Bom Will, até outro dia.

Ele parece um pouco apreensivo quando pergunta-me se quero ficar para jantar.

– Se não tiveres outro compromisso, já que – ele parece cada vez mais incerto – sei perfeitamente que tens estado ocupada mas… – acaba por travar – bom, o que estou a tentar dizer é que és bem-vinda a ficar. A jantar connosco.

Observo-o de novo. Sinto-me tão insegura. Que vontade de ficar. Mas sei que não posso. Tampouco sou capaz de entender se ele de facto o quer. Os seus olhos castanhos costumavam ser a janela da sua alma. Todavia, eles carregam agora a densidade da matéria. São os olhos da diplomacia.

– Gostaria de ficar, Will, mas acho que não posso, tenho um prazo para fechar esta noite.

– Imaginei. Mas fico feliz por saber que estás a gostar do teu trabalho. Da tua nova vida.

O meu peito quebra-se em duas partes. Metade fica naquela sala, batendo acelerado. A outra metade segue comigo, controlado. Sim, o gostar de viver às vezes não é mais senão do que saber ser-se humano por si próprio. Saber que o amor pode distanciar, mas que a vida seguirá.

Desabafo de uma qawwi, Resenhas

#26|Quero o divórcio (essa faca de dois gumes)

Fonte imagem: istock

Apareceu à minha porta sem avisar. Trazia um ramalhete de flores. Mas a visão não me agradou. Evocou-me antes, a memória do beijo. E de repente desejei que tanto ele como Fatinha tivessem os seus corações violentamente quebrados. Queria que Will estivesse tão miserável quanto parecia. Que se arrependesse por ter destruído a nossa união. Confesso que odiava-me sentir-me daquele jeito. Mas sentia. Era o que eu era, a minha nova entidade. E essa nova entidade, raivosa como um bicho ferido, fez-me fechar-lhe a porta na cara. Na verdade, só tinha aceite dar-lhe o meu endereço porque queria continuar perto de Érica.

– Não vou embora sem falar contigo, Linan! – os golpes na porta permaneciam altos.

Respirei fundo. Tentei abafar os meus gemidos, a angústia agressiva, os ciúmes insuportáveis. Se por um lado não me lembrava de ter experimentado tais sentimentos enquanto qawwi, na condição de humana parecia que neles naufragava.

– Sê breve – pedi num fio de voz, deixando-o entrar. Ao inalar o aroma das flores, espirrei.

– Meu Deus – admirou-se Will ao notar a reacção – São as tuas favoritas!

Para mim também era novidade. A humana em mim era alérgica a antúrios. Peguei no ramalhete e atirei no balde de lixo, sem um pingo de remorsso. Will apenas seguiu-me silencioso.

– Eu amo-te, Linan.

Operou-se uma confusão instantânea na minha mente. Voltei-me bruscamente.

– Não foi um beijo aquilo que vi entre ti e a Fatinha?

O rosto dele voltou-se para baixo.

– Sim, mas…

– Fizeste amor com ela?

O gargalo de Will inchou enquanto claramente engolia uma resposta azeda.

– Não é como estás a pensar, Linan.

-Ah não? Como podes alegar amar-me e ao mesmo tempo fazer amor com ela? Elucida-me, por favor – empurrei a mão dele. O toque não ia aclarar as ideias. Precisava de algo mais forte que isso.

– Em primeiro lugar, tu não estavas aqui!

Fiquei perplexa. Morrendo de overdose daquela ideia estapafúrdia.

– Ah! Então quando nos ausentamos, ausenta-se também o amor?

Will ficou lívido. Parecia tão incrédulo e surpreso quanto eu.

– Nunca deixei de amar-te. Tu é que me abandonaste! Trouxeste a nossa filha de volta, e de seguida sumiste. Eu vi! Deste as mãos a Vallen, de livre vontade, e evaporaste. Sem um único adeus. Dois anos. E eu sem saber se estavas morta, ou se de repente tinhas saído deste planeta. O teu telemóvel, entretanto, chamava. A secretária electrónica às vezes era de França. Outras, de Cabo Verde. Tailândia. Bora Bora. E a última vez, de Sydney. E tu nunca. Nunca deste um sinal, nunca respondeste às minhas mensagens!

– Porra Will, foi por vocês! Para proteger-te, para proteger a Érica! Eu não podia entrar em contacto pois estava a fingir ter deixado tudo para trás. Era a única forma que tinha para poder voltar para vocês.

– Para mim não foi fingimento. Despedaçaste-me por inteiro, Linan. Fatinha só chegou tão perto, porque também estava arrasada e tentava convencer-me de que ia tudo ficar bem. Ela ajudou-me a cuidar de Érica, mas não era…

– Era a minha melhor amiga. E tu a puseste no meu lugar. Foi isso.

Will calou-se. Sacudiu os ombros.

– Lamento imensamente que estejas a ver assim. Eu não estou com ela. Nunca faria isso. Queria apenas que entendesses que nos últimos meses… a minha cabeça estava em todos os lugares. Não fazes ideia!

– Tu também não! – Naquele instante os nossos corpos estavam muito próximos, mas os corações, distantes como o sol e o mar. Por isso gritavamos para que nos ouvissemos – não fazes ideia do quanto perdi para poder voltar para ti!

– Desculpa – os olhos de Will escureceram – Ao contrário de ti, sou humano. O meu corpo está sujeito a essa condição, e às vezes comete atrocidades. Mas o meu coração é e sempre foi teu.

Desejei ardentemente que nem eu, nem ele, fossemos humanos. Que soubéssemos ser unidos de corpo, alma e coração. A dissociação havia nos estilhaçado. E no reflexo dos escombros, brilhavam as nossas falhas. O coração, sem o corpo, é uma cegueira. E o corpo sem coração, é uma mutilação. Não havia metáfora possível para suavizar a realidade.

– Por favor – Will engolia as lágrimas – por favor – repetia consecutivamente – perdoa-me e deixa-me explicar.

– Escuta Will, não condeno-te por teres colocado a minha melhor amiga no meu lugar, ou por teres sido um idiota ao duvidar que eu iria cumprir a minha promessa. Tão pouco por teres esquecido que eu amava-te infinitamente. E sim, aceito as tuas desculpas.

Ele tremia quando perguntou muito baixo:

– Aceitas, mas não vais voltar para mim, é isso?

Reflecti durante alguns segundos. Ele estava correcto.

– Exacto, não vou voltar. Voltar para ti agora significaria desrespeitar os meus sentimentos. Ir contra mim mesma. Estou cansada disso e sinceramente, preciso ser mais benevolente comigo mesma.

– Algo em ti, mudou, meu amor.

– É o que acontece, Will. O universo muda constantemente.

Não tinha vontade de confessar que agora era humana. Que sacrificara os meus poderes, a minha essência, por ele. Uma força amarga e poderosa dentro de mim impedia-me disso.

– E pretendes abandonar-nos de novo? Vais teletransportar-te e sumir pelo mundo? E a nossa filha?

Suspirei. Até há pouco não me imaginava a fazer aquilo sem ele. A ser humana. Mas agora compreendia. Era uma jornada exclusivamente minha. Enfrentar os medos, a solidão, é o que faz de nós, nós. Precisava de um tempo sozinha, para entender-me comigo própria.

– Ouve-me com atenção, Will. jamais abandonarei a Érica, não tens de preocupar com isso. Mas o que quero agora é estar só.

– Percebo – Ele tentou aproximar-me, mas ao ver-me retesar, retrocedeu – ainda tenho fé no nosso casamento. Vou dar-te espaço, até que estejas pronta para perdoar-me.

– Acerca disso – rodei o anel no dedo – eu quero aquela coisa.

Ele franziu as sombras.

– Não sei se compreendo.

– Quero aquela coisa Will – retirei o anel, ao mesmo tempo que tentava desesperadamente recordar-me do termo certo – o divórcio. Eu quero o divórcio.