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Ondas. Elas podem ser calmas, melódicas, propícias a embalar. Ou furiosas, absorventes, rápidas a arrasar. Os Calema são uma mistura de ambas as facetas. Talvez por essa razão a dupla de irmãos tenha escolhido este nome, que tão bem os representa. Calema significa isso mesmo “Ondas”. O mais velho chama-se Fradique. É 5 anos mais velho que o outro, António. Nasceram em São Tomé e Príncipe, descendem de cabo-verdianos, portugueses e angolares. Nutriam desde novos uma forte paixão pela música e lançaram o primeiro álbum em 2010. Actualmente são uma das grandes referências e um dos maiores fenómenos musicais em Portugal.
Enquanto António tende a liderar os vocais, ocupando-se do microfone que não deixa antever uma certa sombra de timidez, Fradique interage com o público, lançando toneladas do seu carisma. Ambos têm vozes vibrantes, são humildes, e juntos deixam-nos abismados pelo infinito talento. Mas mais do que talento, na resenha de hoje, um tanto pessoal, gostaria de relembrar o que aprendemos com os Calema. Uma premissa fundamental para o nosso dia a dia: quem define o que somos, somos nós.
Nos concertos a abarrotar por milhares de fãs, Fradique e António fazem a questão de frisar: “a probabilidade de falharmos era de 99%. Mas foi ao 1% de chance que nos agarráramos”.
É verdade. Antes de triunfarem e transformarem o seu conto de fadas em realidade, eles tiveram muitos percalços e alguns nãos. Duros nãos. Em 2013, por exemplo, altura em que ainda não eram tão conhecidos como hoje, subiram ao palco do programa The Voice na França, com os olhos brilhantes de esperança. Cantaram um tema do brasileiro Gustavo Lima. Aliás, a influência da música brasileira no trabalho dos Calema é notável, especialmente em alguns temas dos primeiros dois álbuns (Ni Mondja Anguené e Bomu Kêlê). Há quem diga que foi por terem escolhido a música errada. Seja como for, a verdade é que o jurado do The Voice não apertou o botão. Nenhum deles virou a bendita cadeira. E isso deve ter sido difícil para a dupla. Era como se naquela noite lhes dissessem que não eram bons o suficiente. Sem falar das adversidades que são naturalmente expectáveis para quem escolhe este tipo de percurso.
Mas os irmãos não baixaram a cabeça. E ainda bem que o jurado do The Voice não apertou o botão! As forças do Universo tinham outros planos para os dois rapazes. Eles estavam destinados a fazer algo que mais ninguém no mundo havia feito.
Em 2015, lançavam o segundo álbum Bomu Kêlê. Em português significa Vamos Acreditar. Foi então que começaram a ganhar mais notoriedade. E foi por acaso, nessa altura, que os ouvi pela primeira vez, na rádio. Julguei que fossem bem mais crescidos, por tanta carga emocional e experiência que imprimiam nas suas cancões. Comprei o álbum e de pronto tornei-me fã. Amole Mu tonrou-se tema de inspiração. Sentia um contentamento melancólico ao escutar Coro Coço, dançava (e farto-me de dançar) ao som de Mama Ê, divertia-me com Qual será, e ai de mim não poder assobiar com o Vou viajar. Decidi escrever à dupla, nas redes sociais, contando que tinham uma grande fã em Moçambique. Pela resposta, pareceram positivamente surpresos. Disseram que adoravam o povo moçambicano, agradeceram por acreditar neles e pediram que continuasse a divulgar o seu trabalho junto aos meus amigos, para que mais depressa pudessem vir a Moçambique. Teria o feito na altura (o que agora faço), mas a verdade é que não foi preciso. Depressa os Calema já dominavam as rádios, as colunas das discos e das farras por todo o país. Ficamos a saber que tinham vencido o STP Music Awards de 2015 (gala de música da República de São Tomé e Príncipe) em quatro das cinco categorias.
E que deleite foi poder vê-los em 2017, a actuar na discoteca do Main.
O tempo passou e os Calema continuaram a trabalhar. Veio o álbum A nossa Vez (A.N.V) com temas ligeiramente diferentes dos anteriores, e que depressa tornaram-se espantosamente populares como o Vai, Ciúme, e o próprio A Nossa Vez. O álbum foi certificado com o disco de ouro. E adivinhem o que é que hoje em dia se canta nos palcos dos “the voice” da vida? As músicas dos Calema!
Em Dezembro de 2019, a dupla anunciou o lançamento do seu mais recente trabalho: Yellow. Um dos temas (intitulado “abraços”) já está disponível no youtube (será que se inspiraram na campanha australiana dos abraços?). Mal posso esperar para conhecer este novo trabalho e claro, fazer uma resenha sobre o mesmo. Todavia, é mesmo Bomu Kêlê que ficou no coração e sobre o qual gostaria de repisar. Afinal de contas, sempre que penso em desistir dos meu próprios sonhos, tento lembrar-me destes meninos, que transformaram os nãos que ouviram em alavanca para o seu sonho. O que muito brilhou e os tornou especiais? Julgo que algo um tanto pessoal, frágil, que uns têm, e outros não: a originalidade. Em Bomu Kêlê, os dois irmãos tiveram participação em tudo, desde a composição de todas as músicas, até a produção. “Sinceramente achamos que os são-tomenses e não só, vão adorar. Porque fizemos os possíveis de cantar para o mundo sem no entanto, perdermos a nossa identidade, ou seja a nossa cultura. Nós acreditamos que a música são-tomense bem produzida tanto na vertente letra como também na melodia pode ter sucesso em todo o mundo” (FNAC) disseram eles na altura. Amém à isso.
É fácil vermos artistas, em todas as vertentes, perderem a sua originalidade. Nas demandas do mercado, entram numa louca e desvairada corrida, seja nos palcos, nos meandros literários, na TV ou ou passerelles, para adaptarem-se a um conteúdo mais comercial, mais “trending”, ou mais de acordo com os “standards” de quem os gere. E lá se vai a tal originalidade, sem a qual, o artista passa a ser apenas mais um número popular.
Quando vi o cantor brasileiro Zezé Di Camargo (certamente mais entendido que eu na matéria) partilhando o mesmo palco com os Calema e a pedir-lhes que cantassem o tema coro coço, por ser uma das coisas mais lindas que ele já ouvira até hoje, soube que era infalível. Há alguma magia nesta originalidade a que me refiro e que deve ser preservada.
Que os Calema (e todos artistas no geral) continuem a conquistar o mundo, sem nunca perderem o toque de magia que os impulsiona. E que voltem, muito em breve, aos palcos de Moçambique.
Por Virgília Ferrão
(Da tripulação da Qawwi)