Por Will
Faço esforço para levantar o rosto, apenas por um instante, para que o ar possa penetrar, já que tenho os pulmões carregados de chumbo. A claridade da lua, num céu tão veludo como o desta noite, pouco me diz. Trago comigo este chumbo que galga devagar para cima, como areia movediça. Trava-me pelos joelhos e derruba-me por terra.
– Por favor, alguém ajude! Ambulância!
A mulher da minha vida, com um bebé de apenas três meses no ventre, continua estirada.
– Desculpa irmão, ela foi-se – ouço alguém dizer.
O peso agora sobe até os meus olhos e explode em átomos que cristalizam-se em violentas lágrimas. Levanto um pé, não consigo andar.
– Não – deve ser um pesadelo, penso comigo trémulo – ela não pode estar morta…
Procuro outra resposta, em outro lugar, mas a verdade é que não há resposta diferente.
Engulo o choro. Sufoco o grito. Sinto o meu rosto paralisado.
Não tenho a certeza de o ter visto chegar. Também não sei explicar como foi que, de repente, a pequena multidão se dissipou, deixando-me a sós, com ele.
– Lamento, Will – a sua voz carrega a seriedade da noite e sem nem aperceber-me, coloco-me em posição de combate.
– O que você fez?
– O que eu fiz, não, o que eu vou fazer!
A rigidez do meu corpo aumenta, mas ele ergue a mão, como quem demanda ordem.
– Linan ainda é importante para a missão, Will. Se realmente a amas, vais ajudar-me a trazê-la de volta. Preciso dela viva!
Vallen. O único qawwi que conheço, além de Linan. Um qawwi que desprezo, e que entretanto, quero abraçar. Graças a ele perdi Linan uma vez. Foi ele quem a transformou, num acto de mera vingança, em humana. Mas quem de nós dois estará mais perto de realizar o milagre?
A necessidade desafia-me por inteiro, rasga-me o peito em dois e obriga-me a implorar:
– Faz o que for preciso, o que quiseres. Ela tem que voltar a viver.
Vallen sacode o seu casaco, encurta a distância. Algo doirado relampeja na sua mão.
– Estende-me o braço, Will.
Obedeço sem pestanejar.
O qawwi passa um pó pela minha pela, que acende como ouro, por alguns segundos, antes de voltar à normalidade.
– São partículas de lua verde de tamarino – explica sucinto – Isto vai levar-te de volta ao passado, algum momento antes do acidente. Tens de manter Linan viva, é só isso que te peço. Se falhares, regressarás até mim, até este momento.
Movo a minha mão, mas Vallen trava-me com um gesto ameaçador.
– Não terás muito tempo. Agora vai. Pensa em algum momento antes do acidente… esfrega o braço e…
Caio.
Pelo menos é a sensação que tenho. E continuo a cair.
Dou por mim em casa. No jardim. Lembro-me deste dia. Andava exausto, rabugento. Se tivesse sabido que teríamos um acidente, não teria perdido tempo a ser um idiota. Procuro-a por toda a casa, mas ela não está. Ligo-lhe, mas não atende. Recordo-me de que foi à consulta. Depois de tanto pensar, só me ocorre uma coisa: deixar um recado por escrito. Antes que o tempo acabe. Sento-me no sofá, pego numa caneta e começo a escrever.
De novo caio. E continuo a cair.
Lá está o sujeito. A cidade deserta. A minha vida sem cor.
– O que houve?
– Se estás aqui, significa que falhaste. Linan continua morta. Não temos muitas chances, rapaz. Vá… volte!
De novo estou em queda escura.
Agora ouço uma música. O tinido de taças. Estou ao pé da porta, sentindo um paladar de chocolate. Bolo que Érica e eu fizemos, para o aniversário da mãe. O que é isto, na minha mão? Julgo que acabo de recolher o gel desifenctante do carro, depois de saber dos perigos que causa estar exposto ao sol.
A dúvida atravessa o meu peito. E se isto for uma armadilha? Um desengano? E se estiverem a pregar uma partida com o meu cérebro? De qualquer forma, não podia permitir o acidente. Que entrássemos no maldito carro, e…
Vasculho um auxílio na cozinha, marcho rapidamente para a garagem e começo a furar um pneu, até que ouço a voz da minha filha.
– Pai! O que estás a fazer?
Tenho a boca e garganta secas.
– Chama a mãe, filha, chama a mãe… – urjo seguindo-a pela cozinha. Preciso contar à Linan, ela saberá o que fazer.
E de novo me abraça a escuridão.
– Não, não pode ser! – balbucio ao dar de caras com os olhos frívolos de Vallen
– Escuta bem, rapaz: talvez haja apenas uma chance. Uma! Use melhor o tempo. Desta vez vou dar-te a flor de dijon, para que tenhas mais tempo e preserves a memória até ao fim. Vai haver modificações no teu corpo, mas é por uma boa causa. É importante que te recordes.
– Vou recordar-me, Vallen.
– Vá, salva a Linan.
Levanto-me da cama, com o coração descompassado. A conversa com Vallen baila na minha cabeça, tenho o peito molhado, os dentes apertados.
Como um raio de luz, as mãos suaves dela percorrem-me para acalmar-me.
– Tiveste um pesadelo?
Quero dizer-lhe. Mas travo-me. Temo que o meu pensamento, por si só, possa levar-me de volta a Vallen. Tudo o que quero é ficar com ela. E não sei como impedir o futuro.
– Abraça-me, Linan – tento buscar conforto no seu corpo, sem pretensão de afastar-me. Agarro-me com tanta força, que venço. Permaneço ao lado dela. Sinto as partículas do tempo abandonarem-me, esgotando-se, autorizando-me a continuar. E permaneço.