Fatinha terminava a decoração da árvore quando a campainha tocou. Eu, ao som de “jingle bell rock”, retirava um bolo quentinho do forno.
Ela entrou na cozinha e sacudindo o resto de pó brilhante das mãos, anunciou com um sorriso malicioso:
– O teu mendigo, ou melhor, o teu lindo e apaixonado “mendi-gato” está aí.
Antes de ir ter com a visita, arremessei um pano de loiça contra Fatinha. Estava farta de dizer-lhe que Will era somente um amigo.
Ele aguardava num canto escuro da sala, onde incidiam as luzes da árvore. O aspecto bastante vítreo dos seus olhos, preocupou-me.
– Will? O que disseram os médicos?
Seguiu-se um longo suspiro.
– Está confirmado. Já não aparece nada nas biopsias nem nos exames. Sumiram! Entendes, Linan? Estou curado!
– Desculpa?
– É como ouviste, curado!
Vibramos de alegria.
Mas não contei a verdade.
Não podia.
A nossa amizade florescera muito nos últimos meses e ao saber sobre a terrível doença, tive de usar o Dijon que trouxe sem autorização, para curá-lo. Claro que Will não se lembrava, pois eu o compelira a esquecer-se disso.
– Deve ser um milagre, Linan. O mesmo que te trouxe para mim.
Suavemente ele envolveu-me num abraço. A lentidão do gesto causou-me um familiar calor. Era o mesmo fogo que invadia-me a espinha pelo estômago adentro, toda a vez que ele tocava-me. Entrou pela janela um resto de vento a tentar apaziguar-me, mas o fogo era voraz.
Consegui soltar-me, a tempo de evitar que o meu peito estoirasse. Relutante, ele acabou também por afastar-se. Afinal de contas, era essa a condição para a amizade prevalecer. Evitar aquele tipo de contacto, pois fazia-me sentir tão instável como quem abre portas às escuras.
Concentramo-nos então nos planos de Will: o seu desejo de voltar a tentar adoptar a menina Erica. Ainda que estivesse só.
Pensei que nada fosse estragar o sabor adocicado dos dias de sol que se seguiram. Mas uma voz proclamada numa medonha sequência patológica, fez-se ouvir no meu quarto, denunciando o contrário:
– Pobre Linan. Tão longe de nós e tão parecida com eles!
Nunca senti-me tão arrepiada como naquele instante. Os olhos azuis índigo marcavam a mudança: um qawwi inimigo aterrara na terra!
Saltei da cadeira, em posição de defesa:
– Vallen! Porque é que estás aqui?
– Vim fazer aquilo que tu falhaste. Acabar com os qlubs.
Soltou-se de mim uma gargalhada, pese embora a garganta estivesse seca. Vallen olhou-me boquiaberto:
– Porque é que te ris, criatura?
– Meu caro, o riso é uma válvula de escape para os humanos. Escuta, a minha missão é salvar os qlubs, não o contrário!
– E o que tens feito até agora? Usar dijons sem autorização para curar humanos que não merecem viver? Fui obrigado a vir pessoalmente e eliminar o tal Will. Mas não te preocupes. Ele morreu sem o desgosto de saber que és uma asquerosa extraterrestre infiltrada no mundo dele. Até porque…
Impelida a teletransportar-me para outro lugar, deixei de o ouvir.
Senti um líquido salgado descer dos olhos quando lancei duras investidas na porta. Will morto? O pensamento, por si só, paralisava-me os músculos. Até que a porta abriu-se:
– Linan?
Foi como mergulhar numa piscina em dia de 50 graus.
– Linan… estás pálida. O que é se passa?
A resposta era demasiado intensa. Fechei os olhos e quis esconder-me.
– Estás a assustar-me miúda, diz alguma coisa.
Falar não era capaz. Então, atirei-me nos seus braços e beijei-o. Era uma espécie de insurreição, de quem recusa-se e entrega-se ao prazer ao mesmo tempo. Um atentado contra todas as muralhas que construíra e que agora ruíam sozinhas ao nosso redor.
Encontrei forças para desatar os lábios e libertar a verdade:
– Eu amo-te – ao senti-lo ofegar perto de mim, não tive mais dúvidas – eu amo-te, eu amo-te… – insisti aflita, enquanto Will carregava-me com a mesma urgência nos seus braços. Tal como um buraco negro, o amor é um campo magnético de onde nenhuma matéria escapa. A solução é abandonar-se por completo a ele.
Quando acordei na manhã seguinte, a primeira coisa que Will fez foi oferecer-me icetea. Sabia que era a minha bebida preferida.
Súbito, ele levou os joelhos ao chão, abeirando-se ao pé de mim na cama.
– Estava só à espera que caísses em ti para que pudesse fazer isto. Eu amo-te como nunca amei ninguém antes, Linan.
As mãos trémulas seguravam uma minúscula caixa veluda e os seus olhos não eram mais do que duas pedras de gelo derretendo em fogo lento.
– O que é isso?
Ele abriu a caixinha. Continha um pequeno adorno brilhante.
– É o símbolo de tudo o que representas para mim. Fica comigo, para sempre?
Então era para isso que servia uma aliança? Para afiançar a eternidade ao lado do amor? Será que os humanos não percebiam que perante as suas limitações, mesmo com a infinidade do universo, tal propósito era irrealizável?
– Não posso – apressei-me a meter uma camisola no corpo – Isto foi um erro, não posso…
– Uou, uou, calma! Se achas que é apressado eu volto atrás. Mas não digas que somos um erro, por favor!
– Estás longe de compreender, Will!
– Escuta – ele segurou-me com força para que eu o olhasse nos olhos – Eu também decepcionei-me no passado, mas nestes últimos meses tu devolveste-me a capacidade de confiar. Quero-te como nunca quis ninguém Linan, e sei que sentes o mesmo! Porque é que hesitas tanto? Explica-me!
O coração travou-me na garganta. Ele julgava amar uma humana, que na realidade era uma ET. E por causa da incompetência dessa ET, ele corria agora perigo.
Ponderei depressa sobre o que fazer. Dizia a verdade? Arriscando-me a que ele passasse a abominar-me? Ou então compelia-o a apagar-me da sua memória? Não, isso eu não era capaz.
– Oh Will… – sem controlar as lágrimas, e mesmo sabendo as consequências que o meu acto traria, juntei os braços em frente ao corpo, e desapareci do quarto.