Desabafo de uma qawwi

#32|O equilíbrio quebradiço da vida

Sinto um gosto horrível na boca. Perdura no meu paladar desde ontem, o dia em que que soube estar a gerar-se dentro de mim uma vida nova. O sabor amargo ampliou esta manhã. Saía eu da casa de uma aluna, quando vi um menino. Devia ter treze, catorze anos, no máximo. Atirado nas escadas escuras do prédio, isolado, tentava esconder as lágrimas. Os seus olhinhos estreitos mexiam-se acanhados ao ritmo do medo. À medida que os seus ombros agitavam-se sobre o seu corpo em soluços, penetrava este azedume na minha boca. Qualquer um podia ouvir os gritos horripilantes da flat do rés do chão. Os pais do menino agrediam-se verbalmente. E qual força maior para agredir um coração, senão aquela? O menino não tinha uma casa. Tinha um inferno. Como podem, dois seres humanos, trazer uma criança ao mundo para a torturarem daquela forma?

Aquilo tudo forçou-me a voltar a questionar o significado de ser mãe, de ser pai. Talvez pela minha origem distante, pela minha inegável condição de aliegena, eu jamais compreenda, e por consequência, nunca me sentirei preparada para acolher esta semente que brotou em mim. Não neste mundo em particular. E quando nascer, o que vai ser ele? ou ela? Um humano? Um qawwi? Uma criatura híbrida e perdida? A ideia causa-me uma incontrolável pontada no peito. Seja qual for a sua natureza, esta criança já é um pedaço de mim, pedaço que deverei entregar às garras deste planeta tão maltrado, tão dominado de sombras e tão necessitado de ajuda. É justo para a criança? Ou para o próprio planeta? Provavelmente não exista uma resposta clara e julgo que seja pouco óbvio para os próprios humanos. É errado duvidar? Afinal de contas, ser pai acarreta decisões que não se devem impor. Significa abdicar de quaisquer modos egoístas e dedicar toda a energia ao filho, pelo resto dos dias. Significa ficar falido, se preciso for, pela educação dos ditos cujos. Em última análise, significa dar a vida, se for isso que custa. Sou absolutamente livre de o querer… ou não.

Pese embora tenha feito a decisão, o conflito dentro de mim não cessa.

A médica disse-me que devo ter cuidado. Chamou o meu estado de “gravidez de risco”. Pelo que entendi, pode estar em perigo a vida do bebé, ou a minha. Quando é que eu poderia imaginar um fenómeno assim? O corpo degradando-se e sofrendo de tal forma, que enfrenta o risco do apagão? Ode às mulheres humanas, por saberem viver neste equiílibrio quebradiço da vida.

O risco de eu vir a desaparecer deste corpo e desta terra após o nascimento do meu filho, não me assusta. Sei melhor do que ninguém, que a morte é uma das formas de eu voltar ao meu planeta. E o fim do ser humano, é regressar às origens. Aliás, este é um dos pontos cruciais da minha missão.

Porém, de olhos bem vendados, de mente humana que ainda não se abriu para conhecer a sua verdadeira origem, Will não é capaz de compreender quando digo que vai tudo correr bem. Que a morte não é definitiva. Para Will, a ideia do futuro incerto encheu o nosso redor de sombras, de problemas. A dúvida adoeceu-lhe a alma. E quando o espírito adoece assim, vai-se a sanidade da mente. Wil começou a perder o juízo. Pelo menos foi isso que à princípio, pareceu.

Desabafo de uma qawwi, Dicas, Histórias

#29 | artigos que não podem faltar em casa (e no coração) de um ser humano – casos de emergência

 

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Imagem: rutagourment

Sonolenta, deambulo pelas vastas esquinas do centro comercial. Porque é que estas tais “lojas” tem de ser tão grandes? Por outro lado, tivesse eu dormido na cama, teria evitado as dores nas costas. Todavia, adormeci no sofá da sala, a ver na tv as notícias sobre ciclones tropicais. Por conta disso, a primeira coisa que fiz ao acordar na manhã seguinte, antes de ir ao cartório, foi verificar os armários, e compilar uma lista de compras. Neste planeta, tudo é possível, especialmente nos últimos dias, em que as mudanças climáticas fazem valer a sua definição. Desastres naturais são imprevisíveis e inevitáveis. Em caso de emergência, um pouco de preparação e alerta, pode significar a linha ténue entre a vida e a morte.

Começo a recolher da prateleira os itens da minha lista. O primeiro é a água. Os humanos julgam que este bem está disponível a todo o tempo. Por causa da minha missão, posso garantir com toda a segurança, que não é o caso. Até porque pode ocorrer de ficarmos sem sistema de abastecimento, ou simplesmente impedidos de sair de casa. Regra de ouro: ter boas reservas de água potável. 4 litros por pessoa, por dia, deve ser suficiente.

Item número dois: medicamentos. Apesar de recorrer a eles só em última instância, é sempre bom ter um kit com pelo menos paracetamol. E no meu caso, já que agora qualquer ferimento precisa de cuidados (ja não cicratizo automaticamente), um kit de primeiros socorros também ajuda.

O terceiro item são velas. Corrente eléctrica pode falhar. Manter um conjunto de velas e um pacote de fósforos pode salvar do escuro durante esses períodos incertos.

Quarto item: comida não perecível. A cruz vermelha recomenda ter sempre comida para pelo menos duas semanas em caso de nos encontrarmos retidos em casa ou à espera de evacuação. Não é necessário que se acumule somente enlatados de feijão. Podemos ter comida não perecível que na verdade vamos gostar de comer, numa situação destas.

Por último, vou atrás de pilhas. Desde que estejamos bem preparados, telemóveis e computadores (essas ferramentas que tornaram-se um só com os humanos), podem continuar a funcionar, mesmo se a electricidade for abaixo. É sempre bom manter power banks carregados, baterias carregáveis e pilhas para os paraelhos que funcionam a essa base. Assim mantemos contacto com os mais próximos em caso de emergência.

– Linan?

As pilhas quase caem no chão. Não creio nos meus olhos.

– Fatinha…!

Recebo dois ardentes beijos no rosto. O calor deixa-me embaraçada. O que faço com esta vontade de abraçar Fatinha? À medida que o tempo sarou-me, senti a sua falta. Da sua amizade. Enquanto em conflito comigo mesma, não fui capaz de perceber que havia sido algo injusta com ela. Ensaio dentro de mim as desculpas. Mas limito-me a comentar:

– Há muito que não te via, Fatinha.

– Mudei de cidade. Linan, sinto-me tão culpada por tudo o que aconteceu…

– Fatinha…

– Deixa-me falar, por favor. Nunca tivemos oportunidade.

– E nem é preciso…

– Para mim é – interrompe com firmeza – Fiquei para morrer quando tu e Will terminaram. Estávamos arrasados pelo teu desaparecimento e talvez tenha sido esse desespero que acabou levando-nos a cometer aquele deslize. Porque foi só isso, um deslize. Algo passageiro, numa noite de bebedeira e de lágrimas. Depressa nos apercebemos que tinha sido um erro. Will é um homem especial, e não vai amar outra que não tu. E sinceramente, nunca perdoei-me por ter perdido a tua amizade.

As palavras entalam-se na língua. Dou por mim envolvida pela lembrança da visita ao cartório naquela manhã. Tinha sido com o propósito de assinar os papéis do divórcio. Não foi uma experiência agradável. A sala quente guardara uma gelada agonia. Uma tensão parecida a do ambiente que espera um caçador abater a presa. É um processo doloroso por natureza. Pouco humano. Will e eu assináramos a certidão, sem trocarmos muitas palavras. No fim, ele foi-se embora. Nem sequer lembro-me de ter visto o seu rosto. Parte de mim ficou derrubada ao saber que “oficialmente”, passáramos a ser nada um para o outro. Mas assim era. A reciclagem humana. O varrer e o despejo dos cacos.

– Não guardo ressentimentos Fatinha, e honestamente, peço desculpas se tratei-te mal. Na verdade o Will e e eu acabamos de assinar o divórcio.

– Oh não. Linan…

– Va la Fatinha – os meus lábios curvam-se num leve sorriso e então abraço-a. – não te sintas mal. Compreendo. Passa lá por casa um dia destes.

– Passo sim – concorda Fatinha

É incrível como tudo passa. Quem diria. Neste momento, nada do que tinha acontecido importava. Eram apenas marcas e recordações, como a foz que desaguou no mar.

Confiro os itens no cesto. Está completo. E dentro de mim, como a ponta de uma vela, acende-se uma estrela, clareando o sentimento renovado de tranquilidade e reconciliação. Coisas indispensáveis para o coração de um ser humano.

Desabafo de uma qawwi

#27| Escolha um trabalho que você ame e não terá que trabalhar um único dia da sua vida

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Imagem: The International Educator

Nos últimos meses, encarar a vida como humana parece-me uma tarefa mais aceitável. Às vezes ando pelas ruas, absorta nos meus pensamentos, ardendo na tal melancolia, esse manto que se agarra a quem caminha só. Outras vezes, caminho mais atenta. À procura de sinais escondidos da missão que falhei. Quem sabe haja algo no semáforo fechado, na mulher de mão estendida, ou no andaime suspenso.

Há momentos em que busco tão-somente um rosto amigo. Nessas alturas, sou capaz de ver Will. No rosto do vendedor de jornais da esquina, por exemplo. Ou no simpático vizinho que dispensa alguns segundos das suas manhãs para cantar-me os bons dias. À medida que o tempo passa, eu aprecio esta memória viva dentro de mim. Aceito-a.

Todavia, há outros aspectos da vida humana que são praticamente insuportáveis. Não poder teletransportar-me é angustiante. Não tolero andar de carro, por isso a bicicleta acaba sendo um meio termo. Custa-me habituar-me as estranhezas do corpo humano. Quantas vezes acordo a meio da noite, com impetuoso calor? Que dizer então quando acomete-me uma terrível dor de cabeça? Ah, a dor de cabeça. Essa espanstosa novidade.

Em momentos de ansiedade, deixo-me sentar ao luar, entre as árvores do quintal. É assim que resolvo os meus conflitos. A olhar para estrelas, sem pressa. Permitindo-me lembrar que além delas, há muito mais. Um dia, quem sabe, eu volte ao meu planeta. É essa esperança que me consola.

A dor de cabeça começa a ceder. O stress por causa do deadline desaparece. A situação, subitamente, parece-me ridícula. Eu, Linan, stressada por causa de trabalho? Solta-se de mim uma morna gargalhada.

Algo que causou-me admiração logo que cá cheguei, foi o tempo reduzido dos humanos. 70 entre 80 anos. Essa é a média geral de vida. E mesmo assim, esta espécie passa a maior parte do tempo a trabalhar. Eu até compreendo. O sistema não permite que seja diferente. E ter um trabalho, chega a ser uma grande dávida. O que eu não compreendo, entretanto, é como tantos humanos deixam que o trabalho os frustre, sugue a vitalidade. Onde está benefício nisto? Como é que milhares de pessoas conseguem estar ao serviço de empresas e de empregadores que não valorizavam o seu esforço, nem o seu tempo? Como é que conseguem trabalhar em algo que abominam? É aterrador. E sabem porquê? Porque hoje, como humana, não tenho outra opção senão trabalhar. No princípio, achei que não fosse capaz. Mas aos poucos, a solução desvelou-se. Lenta e infalível.

Eu falo muitas línguas. Mais de quinze. Assimilei-as como quem bebe água, quando ainda era qawwi. O que eu não sabia, é que isso podia converter-se em dinheiro. Foi uma boa surpresa descobrir que ensinar outros humanos, é um trabalho comum neste planeta!

Comecei por trabalhar com crianças. Estar com elas era quase como regressar a Stefanotis. E não demorou muito para depressa começarem a surgir vários pedidos distintos. Queriam que ensinasse adultos. Que trabalhasse com umas tais “instituições”. Passei a oscilar entre “intérprete”, tradutora” e “educadora”. É engraçado como no planeta terra podemos ser várias coisas ao mesmo tempo. Isso fascina-me. O novo trabalho obriga-me a viajar com frequência. Quer dizer, andar pelo mundo e conhecer pessoas, experimentando a terra com olhos de humana, não é de todo uma obrigação. Quando muito, um acto de diversão.

“Escolha um trabalho que você ame e não terá que trabalhar um único dia da sua vida”. Disse Confúcio, um pensador e filósofo. Colei esta frase na parede do meu escritório em casa. É a prova da sabedoria humana.

O mais importante não é o dinheiro que estou a ganhar. As utilidades para ele não são tantas. A forma como o trabalho está a transformar-me sim, é fabulosa. Diminui os vácuos dentro mim, transformando-os em luminosos jardins. Em suma, o trabalho faz-me sentir, pela primeira vez, curiosidade, e até uma pontinha de alegria em ser humana.

– Oh mãe, tenho mesmo de ir? – pergunta uma voz firme e meiga. Érica surge na varanda. Coloca a pomposa mochila às costas, lança-me um olhar desgostoso – raramente estou contigo… um fim de semana é muito pouco!

Levanto-me da grama e ajeito a gola do casaco da minha filha.

– Por mim ficavas aqui o ano todo meu amor, só que o teu pai vai chatear-se se eu não for deixar-te. E se no próximo feriado formos passear? Podíamos ir acampar na praia, como fizemos na páscoa, o que achas?

Érica agita-se com os olhos saltitantes de excitação.

– O pai também vai?

– Só nós duas, meu amor.

Indignada, e como forma de protesto, ela saca os headphones cor de rosa do bolso e os mete nos ouvidos.

– Tu e o papá são uns chatos…

Acompanho a minha filha até a casa do pai. De táxi, a rota demora cerca de 15 minutos.

No portão da vivenda, Will está com uma mulher. Ela despede-se dele de forma bastante afectuosa, antes de enfiar-se num vistoso mercedes.

O meu coração bate mais depressa. Faz tanto tempo que não vejo aquele homem. Deixou a barba crescer. Parece mais velho. Tal como eu, ele também tem um trabalho. Sempre teve, pese embora eu só agora compreenda esse fenómeno na sua plenitude.

– Entra, Linan.

Mal reconheço a sua voz. Há alguns meses eu disse que queria o divórcio. Longe de imaginar que com isso, abriria as portas para a chegada de um estranho. Como quando uma árvore caí. A raiz, quem sabe, reaaproveite-se. Mas ela, jamais será a mesma.

– Senhorita Érica, depressa a lavar as mãos para vir jantar, faça o favor…

– Sim paizinho, mas não te esqueças que não tenho mais seis anos, faça o favor você também! – reclama Érica correndo pelas escadas, as botas de couro ressoando pelo soalho.

– Anda cá uma reclamona… – comenta Will, debruçando-se sobre a mesa onde estão espalhadas várias folhas gigantescas, réguas e esquadrões. Will procura algo. Se calhar o lápis encaixado na sua orelha.

– Will…

– Sim? – ele ergue a cabeça. Nos seus olhos já não há o brilho que a qawwi em mim conheceu um dia. Neles, somente uma interrogação – ah… a papelada. O advogado prometeu que até para semana finalizamos tudo, não te preocupes, estamos quase.

– Não era isso – respondo constrangida. – O lápis… – faço um gesto indicando a orelha.

Will encontra o lápis. A gargalhada que deixa escapar, floresce como uma primavera, e deixa-me mais à vontade para concluir:

– És um pai exemplar Will. Estás a fazer um bom trabalho com a Érica, ela é uma menina incrível. É isso que queria dizer.

Ele parece confuso.

– Estamos os dois, certo?

Respiro, anuo e levanto a mão.

– Bom Will, até outro dia.

Ele parece um pouco apreensivo quando pergunta-me se quero ficar para jantar.

– Se não tiveres outro compromisso, já que – ele parece cada vez mais incerto – sei perfeitamente que tens estado ocupada mas… – acaba por travar – bom, o que estou a tentar dizer é que és bem-vinda a ficar. A jantar connosco.

Observo-o de novo. Sinto-me tão insegura. Que vontade de ficar. Mas sei que não posso. Tampouco sou capaz de entender se ele de facto o quer. Os seus olhos castanhos costumavam ser a janela da sua alma. Todavia, eles carregam agora a densidade da matéria. São os olhos da diplomacia.

– Gostaria de ficar, Will, mas acho que não posso, tenho um prazo para fechar esta noite.

– Imaginei. Mas fico feliz por saber que estás a gostar do teu trabalho. Da tua nova vida.

O meu peito quebra-se em duas partes. Metade fica naquela sala, batendo acelerado. A outra metade segue comigo, controlado. Sim, o gostar de viver às vezes não é mais senão do que saber ser-se humano por si próprio. Saber que o amor pode distanciar, mas que a vida seguirá.

Desabafo de uma qawwi, Resenhas

#26|Quero o divórcio (essa faca de dois gumes)

Fonte imagem: istock

Apareceu à minha porta sem avisar. Trazia um ramalhete de flores. Mas a visão não me agradou. Evocou-me antes, a memória do beijo. E de repente desejei que tanto ele como Fatinha tivessem os seus corações violentamente quebrados. Queria que Will estivesse tão miserável quanto parecia. Que se arrependesse por ter destruído a nossa união. Confesso que odiava-me sentir-me daquele jeito. Mas sentia. Era o que eu era, a minha nova entidade. E essa nova entidade, raivosa como um bicho ferido, fez-me fechar-lhe a porta na cara. Na verdade, só tinha aceite dar-lhe o meu endereço porque queria continuar perto de Érica.

– Não vou embora sem falar contigo, Linan! – os golpes na porta permaneciam altos.

Respirei fundo. Tentei abafar os meus gemidos, a angústia agressiva, os ciúmes insuportáveis. Se por um lado não me lembrava de ter experimentado tais sentimentos enquanto qawwi, na condição de humana parecia que neles naufragava.

– Sê breve – pedi num fio de voz, deixando-o entrar. Ao inalar o aroma das flores, espirrei.

– Meu Deus – admirou-se Will ao notar a reacção – São as tuas favoritas!

Para mim também era novidade. A humana em mim era alérgica a antúrios. Peguei no ramalhete e atirei no balde de lixo, sem um pingo de remorsso. Will apenas seguiu-me silencioso.

– Eu amo-te, Linan.

Operou-se uma confusão instantânea na minha mente. Voltei-me bruscamente.

– Não foi um beijo aquilo que vi entre ti e a Fatinha?

O rosto dele voltou-se para baixo.

– Sim, mas…

– Fizeste amor com ela?

O gargalo de Will inchou enquanto claramente engolia uma resposta azeda.

– Não é como estás a pensar, Linan.

-Ah não? Como podes alegar amar-me e ao mesmo tempo fazer amor com ela? Elucida-me, por favor – empurrei a mão dele. O toque não ia aclarar as ideias. Precisava de algo mais forte que isso.

– Em primeiro lugar, tu não estavas aqui!

Fiquei perplexa. Morrendo de overdose daquela ideia estapafúrdia.

– Ah! Então quando nos ausentamos, ausenta-se também o amor?

Will ficou lívido. Parecia tão incrédulo e surpreso quanto eu.

– Nunca deixei de amar-te. Tu é que me abandonaste! Trouxeste a nossa filha de volta, e de seguida sumiste. Eu vi! Deste as mãos a Vallen, de livre vontade, e evaporaste. Sem um único adeus. Dois anos. E eu sem saber se estavas morta, ou se de repente tinhas saído deste planeta. O teu telemóvel, entretanto, chamava. A secretária electrónica às vezes era de França. Outras, de Cabo Verde. Tailândia. Bora Bora. E a última vez, de Sydney. E tu nunca. Nunca deste um sinal, nunca respondeste às minhas mensagens!

– Porra Will, foi por vocês! Para proteger-te, para proteger a Érica! Eu não podia entrar em contacto pois estava a fingir ter deixado tudo para trás. Era a única forma que tinha para poder voltar para vocês.

– Para mim não foi fingimento. Despedaçaste-me por inteiro, Linan. Fatinha só chegou tão perto, porque também estava arrasada e tentava convencer-me de que ia tudo ficar bem. Ela ajudou-me a cuidar de Érica, mas não era…

– Era a minha melhor amiga. E tu a puseste no meu lugar. Foi isso.

Will calou-se. Sacudiu os ombros.

– Lamento imensamente que estejas a ver assim. Eu não estou com ela. Nunca faria isso. Queria apenas que entendesses que nos últimos meses… a minha cabeça estava em todos os lugares. Não fazes ideia!

– Tu também não! – Naquele instante os nossos corpos estavam muito próximos, mas os corações, distantes como o sol e o mar. Por isso gritavamos para que nos ouvissemos – não fazes ideia do quanto perdi para poder voltar para ti!

– Desculpa – os olhos de Will escureceram – Ao contrário de ti, sou humano. O meu corpo está sujeito a essa condição, e às vezes comete atrocidades. Mas o meu coração é e sempre foi teu.

Desejei ardentemente que nem eu, nem ele, fossemos humanos. Que soubéssemos ser unidos de corpo, alma e coração. A dissociação havia nos estilhaçado. E no reflexo dos escombros, brilhavam as nossas falhas. O coração, sem o corpo, é uma cegueira. E o corpo sem coração, é uma mutilação. Não havia metáfora possível para suavizar a realidade.

– Por favor – Will engolia as lágrimas – por favor – repetia consecutivamente – perdoa-me e deixa-me explicar.

– Escuta Will, não condeno-te por teres colocado a minha melhor amiga no meu lugar, ou por teres sido um idiota ao duvidar que eu iria cumprir a minha promessa. Tão pouco por teres esquecido que eu amava-te infinitamente. E sim, aceito as tuas desculpas.

Ele tremia quando perguntou muito baixo:

– Aceitas, mas não vais voltar para mim, é isso?

Reflecti durante alguns segundos. Ele estava correcto.

– Exacto, não vou voltar. Voltar para ti agora significaria desrespeitar os meus sentimentos. Ir contra mim mesma. Estou cansada disso e sinceramente, preciso ser mais benevolente comigo mesma.

– Algo em ti, mudou, meu amor.

– É o que acontece, Will. O universo muda constantemente.

Não tinha vontade de confessar que agora era humana. Que sacrificara os meus poderes, a minha essência, por ele. Uma força amarga e poderosa dentro de mim impedia-me disso.

– E pretendes abandonar-nos de novo? Vais teletransportar-te e sumir pelo mundo? E a nossa filha?

Suspirei. Até há pouco não me imaginava a fazer aquilo sem ele. A ser humana. Mas agora compreendia. Era uma jornada exclusivamente minha. Enfrentar os medos, a solidão, é o que faz de nós, nós. Precisava de um tempo sozinha, para entender-me comigo própria.

– Ouve-me com atenção, Will. jamais abandonarei a Érica, não tens de preocupar com isso. Mas o que quero agora é estar só.

– Percebo – Ele tentou aproximar-me, mas ao ver-me retesar, retrocedeu – ainda tenho fé no nosso casamento. Vou dar-te espaço, até que estejas pronta para perdoar-me.

– Acerca disso – rodei o anel no dedo – eu quero aquela coisa.

Ele franziu as sombras.

– Não sei se compreendo.

– Quero aquela coisa Will – retirei o anel, ao mesmo tempo que tentava desesperadamente recordar-me do termo certo – o divórcio. Eu quero o divórcio.

Desabafo de uma qawwi

#25|Infinitamente humana

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Imagem: Chobir Doka. Fonte

O comboio estava em movimento há mais de três horas. E eu verificava cada minuto. Logo eu, que o tempo nunca precisei controlar. O que passei a ser, senão um ser reduzido àquela tragédia? Estava severamente limitada pelo tempo. Pelo espaço. Pelo meu próprio corpo. Corpo este vulnerável, cheio de cortes e de feridas que demoravam cicatrizar. Havia tanto em mim, naquela nova condição de humana, que ainda não compreendia.

A assistente de bordo trouxe o almoço, acompanhado de um cálice de vinho. A cabine era confortável. Estava ambientada ao som de Beethoven e exalava a morango. Tossi e apertei os punhos. Tudo aquilo incomodava-me. Os aromas, a música, a raiva misturavam-se nas minhas veias, realçando o que corria dentro de mim. Só que a corrida era em queda livre. O meu peito tornara-se um poço sem fim. Batia três vezes mais rápido.

– Com licença – murmurou um homem alto que passava pelo corredor, fumando um charuto. Já ia à distancia, mas mesmo assim, as minhas narinas continuaram a captar o tabaco. Quase vomitei. O motor do comboio soava tão alto, que parecia estar dentro do meu estômago. O simples som do cálice assentando na mesinha dobrável, assemelhava-se ao estrondo de uma bomba.

Transpirei. 20 graus neste corpo em transformação, parecia a temperatura de uma sauna. Tudo. Absolutamente tudo estava amplificado dentro de mim. Os sons, os cheiros, a energia, os meus medos. Quis fugir deste destino, mas agora estava acorrentada. Até o dia em que finalmente morresse. Talvez sem deixar um legado ou uma herança. Que conceito melancólico era esse, da herança. Viver e construir para um momento em que não existiremos. Que lógica havia nisso? Aliás, a minha vida inteira parecia ter perdido o sentido. Olhar para o almoço pousado à minha frente, deixava-me deprimida. Comer já não era uma opção. Era um ultimato.

Em suma, eu havia trocado a possibilidade de voltar para as galáxias, por um assento de comboio. Uma vida plena, por um estômago constantemente faminto. Seria capaz de conviver com isso?

Uma mão pousou no ombro. Virei-me para o lado esquerdo e dei de caras com uma mão estendida para mim, segurando um copo de água. Os músculos do rosto do jovem estavam contritos. Ele continuou calado, oferecendo-me o copo.

– Desculpe – consegui murmurar depois de engolir um gole de água. – tive um momento, mas já passou – tentei justificar-me, limpando as ousadas lágrimas que haviam vencido. É isto que acontece com os humanos quando confrontados com as suas limitações. Esta triste manifestação que arrebata como um inevitável ciclone. É isto… que é ser humano.

– Seja o que for, moça – balbuciou o jovem com cautela – vais ficar bem. No fim, vais ficar bem.

Observei-o. Os olhos cheios de luz, que rondavam-me preocupados a tentar dizer “estou aqui para qualquer coisa”, e o sorriso desajeitado, lembraram-me Will. A lembrança foi como um leve alvorecer. Uma esperança que brotava do vácuo e começava a alçar o meu peito à vida.

Will, Érica. A minha família. Sinónimo de amor. O derradeiro privilégio de se ser humano.

– Também acredito que vai ficar tudo bem, obrigada.

E agarrei-me ao pensamento. À minha família. Aos meus amigos. Eles esperavam por mim, tanto quanto eu por eles. Eles é que tornariam a minha jornada como humana mais leve. É assim que os humanos aguentam a sua condição. Com amizade e com amor.

Will e Érica não suspeitavam que era hoje, dois anos depois, que voltaríamos a estar juntos. Quando eu chegasse em casa, a luz a escuridão, os beijos e as lágrimas seriam um só. Morreríamos de amor, para tornar a viver. Este pensamento manteve-me acordada durante a viagem inteira. E foi ele o motor para o meu corpo fraco, correr sem cansar-se. Não dava para esperar.

Quando cheguei ao pé da varanda, senti-me estupidamente viva. O meu rosto, os meus lábios, devagarinho abriram-se num longo esgar. Acho que estava a sorrir. Era a primeira vez que o fazia desde que havia perdido os meus poderes.

Pelas cortinas, vi-os na sala. E o peito vibrou com estertor.

Will colocava um bule na mesa, onde Érica concentrava-se a volta de cadernos. Como a minha filha tinha crescido!

Mas o meu sorriso, depressa marmorizou-se, nos lábios subitamente frios. Uma mulher apareceu na sala e meteu os braços a volta de Will. Parecia ser a minha amiga Fatinha. Will voltou-se de costas, e ela, tão depressa, beijou-o nos lábios.

Nesse instante, Will levantou os olhos e viu-me pela janela. O copo que segurava tombou e estilhaçou-se.

O meu primeiro instinto foi desaparecer, como tantas vezes fiz quando era qawwi. Mas permaneci ali. Não conseguia teletransportar-me, tão pouco impedir aquela dor, aquela perplexidade, de dominarem o meu corpo. Era tudo o que restava-me. A amarga admiração, e o corpo forasteiro, coberto de pânico, atarracado ao pé daquela janela, de olhos muito abertos, sem poder mexer-se. Deparava-me com a minha nova realidade. Infinitamente humana.

Desabafo de uma qawwi, Histórias

#24 |O preço da liberdade

Uma lua plena dominava o céu escuro de Sydney, a cidade escolhida para a nossa última paragem. A janela do apartamento com vista para uma linha férrea, parecia o espelho do mundo. Comboios traziam chegadas e partidas, como quem traz ar para dentro e fora dos pulmões.

Sentada numa cabeceira tão pequena quanto a minha liberdade, lutava para terminar a tarefa. Era quase como tentar vencer o espaço. Restavam-me cinco minutos. A cabeça latejava, os braços tremiam. Agora tinha apenas dois minutos. Levei a mão ao rosto e limpei uma gota de suor. Sacudi a gola da camisola, decidida a controlar o meu destino. Mais um toque, um gemido de dor, e a pedra abriu-se. A luz que explodiu de dentro dela, irradiando todo o meu ser, não era outra coisa senão o meu coração em jubilo. Suspirei, aliviada. A partir daquele momento, caso a minha teoria estivesse certa, tudo o que eu tinha feito desde que chegara ao planeta terra, tudo o que havia tocado com a força dos meus poderes, permaneceria intacto. Acontecesse o que acontecesse. Isso significava que já podia voltar para casa. Após dois anos de ausência, a correr pelo mundo com Vallen, a fingir abraçar uma causa que não era minha, iria tornar a abraçar a minha família humana.

Nervosa e sem tempo, deambulei pelo apartamento. As janelas nuas entregavam-se solenemente aos reflexos do luar. Em desespero, procurei o oitavo qlub. Não podia deixar que Vallen ficasse na posse do objecto. É claro que ele consideraria o meu acto uma afronta, uma traição. Mas não existiam outras opções. Eu ia voltar para casa, e carregaria comigo as chances do inimigo destruir o planeta terra. Deparei-me, por fim, com o objecto. Vallen não se esforçara para o esconder.

Contei cada um dos meus medos, por forma a que pudesse medi-los. Primeiro os mais pequenos: medo de a minha teoria falhar. De não ser capaz de conviver com isso. Depois os maiores: medo de não recuperar a minha família. De ser apanhada por Vallen e perder os meus poderes. Porém, o medo de um mal, só leva à um mal ainda maior.

Meti o objecto no bolso.

– Aonde é que vais com o qlub, Linan?

Sabia que a voz às minhas costas pertencia ao meu maior medo. Vallen se tinha materializado dentro do quarto. Talvez estivesse a vigiar-me há muito tempo. Virei-me para ele buscando força em cada fibra do meu corpo. Disso dependia o meu futuro como qawwi. Arremessei-o para longe, mas Vallen regressou como tempestade. Todas as peças no quarto levitaram e vieram disparadas na minha posição. Desviei-me e atirei flechas quentes. A minha pontaria andava tão certeira quanto o meu desejo de voltar para casa. Vallen caiu no chão. Uma fecha despontava vitoriosa no seu ombro. Julgava eu ter vencido a batalha, mas tal pensamento desvaneceu-se quando dei por mim, parada no mesmo local, incapaz de teletransportar-me. A luz do luar relampejava pelo quarto inteiro.

– Eu sou um qawwi de palavra, Linan – Vallen lançava-me um olhar decepcionado, ao mesmo tempo que erguia-se, com uma mão pousada no ombro em cicatrização. Tinha os olhos vermelhos quando ergueu o braço na minha direcção – por ordens do Rei Réon que dá-me poderes e autoridade para isto.

– Não – murmurei lívida de pânico, sem conseguir mover-me.

– Vais sair daqui sim, Linan, mas não como qawwi.

E então percebi, quão alto era o preço da liberdade. Não era capaz de o pagar.

– Vallen, por favor, não.

Ele meteu a mão na minha cara. Senti os meus olhos acuarem-se, num misto de súplica e ira. Vallen transpirava. Sentia dor. Custava-lhe. Mas ainda assim não se deteve. Gritei, pois parecia que me cortavam à faca. A minha pele adquiria um tom acinzentado, sangue corria-me pelo nariz, e o meu rosto começou a esticar-se, como se quisesse abandonar o corpo. A minha essência de qawwi libertava-se, para sempre, do meu ser.

Vallen baixou a mão e eu tombei para o lado.

Ele agachou-se, vasculhou-me os bolsos e tirou o oitavo qlub.

– Aí tens. Tira bastante proveito dos dias que te restam na reles vida que escolheste como humana.

E desapareceu do quarto.

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Imagem: TVD – canal CW – Fonte Theodysseyonline

Desabafo de uma qawwi, Histórias

#21| Leva contigo o meu coração

Apesar da grandeza do Rio de Janeiro, consegui localizá-lo. Mais rápido do que previ. Rondava pelo telhado do prédio, quando finalmente vi o meu inimigo. Aterrei no pulo de um gato e comecei a disparar várias flechas contra ele. Os qawwis só perecem se atingidos no peito ou na cabeça. Todavia, o ferimento que causei, embora fosse cicatrizar automaticamente, servira para o neutralizar. Lancei bolhas de energia e de seguida atirei-me sobre o seu pescoço.

– Devolve a humana, agora!

Vallen grunhiu.

– Ai sim? Se não o quê? – Apesar de sufocada, a voz abafada daquele qawwi vil continuava eivada de afronta. Isso irritou-me e fez-me cercá-lo com muito mais força.

– Se não eu mato-te e vou sozinha atrás dela. Vou encontrá-la, Vallen, demore o que demorar.

Podia ser pelo facto de ter passado as últimas noites em claro. Ou então, por apenas há alguns dias, eu ter casado e perdido a família. Numa única noite. Mas a verdade é que eu tinha sede daquele confronto. Sentia a morte no ventre. E não duvidava que um de nós fosse sucumbir. Estava na hora.

Vallen fez um novo grunhido. Uma gargalhada confinada.

– Tu não me vais matar, Linan.

– Qual seria a razão para não o fazer?

– É simples – as suas veias pulsavam como um vulcão em erupção – matas-me e estarás também a matar a tua querida humaninha. A minha vida está atada à dela, minha cara, portanto, tudo o que fizeres comigo, será sentido por ela.

Imediatamente tirei o braço. Sabia que o que ele dissera era possível, e portanto, havia todas as chances de ser verdade.

– Ai minha doce Linan…- Vallen ajeitou a camisa e cruzou os braços – Pelo Rei Réon tu já terias sido permanentemente banida de Stefanotis. Eu trago autorização dele para extirpar-te dos teus poderes. Só não o fiz porque ainda tenho esperança em ti. Estou ao teu lado, Linan.

– Faz-me rir. Se tivesses o poder de extirpar-me, já o terias feito…

– Acontece que preciso de ti com os teus plenos poderes. Da-me o oitavo qlub.

– Não sei nada sobre o oitavo qlub. Ainda estou a meio da minha missão.

Vallen adquiriu um brilho nos olhos.

– Eu sei. Mas acredito nas tuas habilidades, Linan. Ajuda-me a encontrar o oitavo qlub, e eu dou a minha palavra que não rei extirpar-te. Se não me obedeceres, executo a decisão do rei Réon agora mesmo.

O meu sangue gelou. Ser extirpado significa perder a essência. É um dos piores castigos no meu planeta. E só Reon, qawwi supremo, podia aplicar tal medida. Um qawwi extirpado deixa de ter os seus dons, fica imune às doenças e não demora a envelhecer. Em outras palavras, torna-se humano. Algo que eu, nem sequer, conseguia cogitar. Então quais eram as minhas opções? Pôr-me em primeiro lugar e salvar-me? Ajudar Vallen na destruição do planeta terra? Era isso que eu devia fazer?

– Prefiro morrer a juntar-me à ti, Vallen.

O brilho nos seus olhos desapareceu e ele avançou.

Na rapidez de um cometa, senti-me mergulhar num buraco negro. Ia deixar de ser uma qawwi.

Então, subitamente, Vallen retrocedeu. Parecia admirado:

– Preferes mesmo ser extirpada, do que obedecer o rei Réon? De facto deves amar bastante essa tal humanidade. O que é que eles fizeram por ti? – o vinco na testa dele desapareceu e o sorriso jocoso regressou – mas seja feita a tua vontade, Linan. Lembra-te apenas de uma coisa: os teus poderes e dons vão desaparecer para sempre e tudo o que fizeste antes será anulado. Eu faço-te a vontade…

– Espera!

Ergui o braço em defesa. Percebi nesse instante que não estava preparada para tamanha crueldade. Não queria deixar de ser uma qawwi. Essa revelação pesou ainda mais, ao lembrar-me de que eu tinha usado os meus poderes para curar Will de uma doença fatal. Se os meus poderes desaparecessem, era provável que tudo voltasse ao estado original. Will podia morrer. Coisa normal neste mundo que eu tanto queria abraçar. No entanto, não era capaz.

– Eu faço o que queres, Vallen. Vou contigo procurar o oitavo qlub – ele rompeu num urro de vitória, que tratei de interromper. – mas tem uma condição: temos de devolver a menina ao pai.

– Trato feito, minha amiga! Devolvemos a menina, e seguimos a nossa viagem.

Pouco depois, estávamos em frente de casa. Vallen permitiu que me despedisse de Will. Entretanto ao vê-lo de longe, pelo vidro da varanda, não tive coragem de entrar. Will esperava ardentemente pelo nosso regresso. Eu sentia-o. Mas se chegasse perto, não teria força para abondona-lo.

Ajoelhei-me em frente de Érica e arranjei-lhe a gola do vestidinho. Até os canários do jardim percebiam a minha tristeza.

– Quero que corras para casa, minha filha. Vai dar um abraço ao pai.

– Mãe… tu não vens?

Olhei mais uma vez para a varanda envidraçada. Will ainda não tinha dado pela nossa presença. Afaguei o cabelo de Érica.

– Venho mais tarde – era a primeira vez que mentia para a minha filha – Diz ao pai que a mãe ama muito vocês, e vai amar para sempre. Sê uma boa menina.

– Está na hora de partirmos Linan. – advertiu Vallen.

Abracei Érica com muita força.

– Corre, vai dar um abraço ao pai!

Ela correu. E com ela levou o meu coração.

Vallen estendeu-me a mão. Era como se a gravidade e os astros se tivessem feito ausentes. Precisava de recuperar o equilíbrio, e agarrei-me ao apoio mais próximo. A mão de Vallen. Foi nesse instante que Will abriu a porta para Érica e viu-me. Poucos segundos antes de Vallen e eu desparecermos pela noite preta.

Desabafo de uma qawwi

#20|Soneto de fidelidade – Meu casamento, meu pesadelo

É a minha pequena Érica quem lidera o cortejo. Entusiasmada com a tarefa, ela saltita pela trilha de areia, cercada de candeeiros e velas. As suas mãos vão largando pétalas vermelhas. A ínfima quantidade que os seus dedinhos conseguem tirar do cestinho.

Sigo atrás dela, acompanhada pelo pai de Will. Os meus pés descalços estão cobertos pelo longo cetim do vestido cor da lua. O mar e as estrelas, quietos, tentam disfarçar os risos, mas certamente estão espantados. Afinal, conheço Will há quê…? Três anos do planeta terra? Todavia, vendo-o ali, parado, trémulo, sorridente, pronto para jurar-me amor eterno num altar coberto de flores e de sonhos, fico com a impressão de que é a primeira vez que o vejo. E é uma visão que deixa-me muda. Inunda-me os olhos. Quando Will toma-me pela mão, o meu peito transborda. De infinito contentamento.

Caríssimos irmãos – inicia o tal “padre”. O ritual é bastante estranho. Mas na sua estranheza, sinto as palavras tornarem-se uma ponte de cristal, a reflectir a verdade que arde dentro de mim, quando chega a vez de dizer os votos:

– Will: contigo aprendi o que há de melhor nos seres humanos. Aprendi que amar é ter no outro o nosso lar, a nossa alma. Que o verdadeiro amor não vê diferenças, mesmo num universo vasto como este. Eu prometo, perante todos, que vou amar-te com força maior que a da gravidade. Cada segundo em que viver neste planeta.

Will mantém o seu olhar fixo no meu, deixa escapar um leve suspiro, e revela:

– Linan: até há algum tempo atrás, precisamente há três anos, o que eu queria era desaparecer. Despedir-me e esquecer-me de tudo. Mas acabei encontrando-te à ti, e contigo não há despedidas. Agradeço-te, infinitamente, por existires. Sobre o meu amor por ti, confesso com a ajuda de Vinícius de Moraes:

Quero vivê-lo em cada vão momento

E em louvor hei de espalhar meu canto

E rir meu riso e derramar meu pranto

Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure

Quem sabe a morte, angústia de quem vive

Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):

Que não seja imortal, posto que é chama

Mas que seja infinito enquanto dure.

O jantar no restaurante da praia parece estar ao agrado dos 12 convidados. Isso tranquiliza-me. Enquanto dançámos ao som de “Janeiro à Janeiro”, sinto uma mãozinha puxar a cauda do meu vestido.

– Mãe… a tia Fatinha não deixa-me comer o bolo!

Carrego-a ao colo e dou-lhe um leve beijo.

– Daqui a pouco a tia Fatinha deixa, tens de ter paciência, está bem?

Para a minha surpresa, já que é uma criança persistente, Érica acena, desce do colo, e volta a estar com Fatinha, a minha grande amiga, agora também madrinha.

Will encosta a sua testa a minha. Parece esbaforido quando sussurra:

– Se pudesse, casava-me contigo todos os dias, Linan.

Uma falha na corrente eléctrica não permite que responda ao comentário. No minuto a seguir, a escuridão impera. E o meu coração acelera como um raio.

– Érica – é tudo o que consigo murmurar.

– O quê?

– Ele está lá fora. Vallen. Com ela!

A corrente é restabelecida mas eu já lancei-me à porta, sem nem perceber que Will corria na direcção oposta. Lá fora, uma brisa sopra na minha direcção, trazendo a visão que veste a forma do meu pior pesadelo: Vallen. Segurando Érica ao colo. A minha filha está dominada pela influência do poder de um qawwi.

– Linan, Linan… falta de educação não convidar os amigos ao casamento, não achas?

Levanto as mãos e faço emergir várias camadas de energia. Mas preciso encontrar a melhor de atacar, sem ferir Érica. É nesse momento que Will junta-se a mim. Para o meu espanto, vem munido de um arco e de flechas quentes.

Ergue uma das flechas:

– Larga a minha filha!

As sombras de Vallen curvam-se:

– A sério Linan? Tiveste o atrevimento de ensinar um humano a usar as nossas armas?

– Por favor – decido que não quero arriscar a vida de Érica – é a mim que queres, deixa a menina ir.

– Com certeza, Linan – Vallen agarra-se mais à Erica – Podes vir buscá-la quando quiseres. Localizei o qlub da esperança. Saberás muito bem onde encontrar-nos.

E em menos de segundos, tanto ele como a minha filha tinham desaparecido. Vallen acabara de fazer algo que poucos qawwis conseguem: teletransportar-se com um humano.

Os olhos de Will toldam-se de sombras. Ele está lívido. Nunca o vi tão transfigurado. O seu rosto é a moldura acesa do desespero. Da dor, e da fúria. É como se o amor e a vida tivessem secado naqueles poucos segundos.

– Não… eu não posso perder a minha filha!

– A nossa filha, Will. – corrijo com pesar – A nossa filha. Vou trazê-la de volta.

Ele encara-me, rígido.

– Leva-me contigo. Temos de ajudar a nossa filha… leva-me contigo!

Então, uma lágrima cai no meu rosto. Quem me dera ter a capacidade de teletransportar-me para tão longe, levando-o comigo. Mas não posso. Mesmo que pudesse, seria o equivalente a assinar a sua sentença de morte.

– Prometo que a terás de volta, sã e salva. Tão breve, meu amor. Confia em mim.

Fatinha, apercebendo-se do movimento, viera atrás de nós. Ela despe a camisola que traz e coloca-a sobre os meus ombros. Não percebe nada, mas de alguma pressente o terrível destino que me espera. A busca por Érica será longa. E o meu vestido de cetim, não é necessariamente o melhor traje para uma viagem destas.

Despeço-me deles. E dos dias de calor e de amor que tanto ansiamos mas que agora serão substituídas por noites geladas, numa estrada solitária. Olho para as estrelas, em busca de força.

– Linan – Will parece derradeiramente assustado quando segura-me pelo braço – não posso perder ambas. imploro.

Devolvo o olhar. Vejo os aneis nos nossos dedos. E com isso, teletransporto-me.

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Imagem: TVD – do canal CW

Desabafo de uma qawwi

#16| A arte de sentir-se heróico

Talvez fosse por causa do efeito de “Love Never Dies”, que não nos apercebemos do estranho movimento. A rua estava deserta e nós, ainda embriagados pelo final do espectáculo. A arte é, e para sempre será, uma das melhores invenções dos humanos.

Assim, quando demos pela presença, já os três homens encontravam-se bem perto. Bloquearam o caminho, e o que estava na dianteira, pôs-se a rondar-nos como um cão que fareja ossos. De seguida puxou um pouco a camisola. A pistola na calças ficou visível.

– Joias e carteiras, rápido!

– Telefones, a porra dos telefones! – acrescentou o outro.

Instintivamente, Will meteu o braço à minha volta e puxou-me para trás.

– Deixem-nos em paz.

Melindrando pela ousadia, o homem sacou a pistola e reforçou a ordem:

– Dinheiro seus surdos, já!

Will afincou e senti que pretendia lutar. Travei-o. Ou ele esquecia-se de que eu era uma qawwi, cheia de poderes que nenhum outro humano tinha, ou ele simplesmente estava dominado por um impulso irracional. E isso era muito perigoso. Os humanos não deviam reagir em circunstâncias daquelas. Era preciso simplesmente obedecere o assaltante para sobreviver. Só que a tênue fronteira entre o terror e prazer, o ter que conviver com o medo como quem abraça um amigo, deu aso a uma revolução. A exacerbada violência nas ruas fez com que noções básicas de defesa pessoal tornassem-se tão necessárias como o acto de respirar. Era por isso que as artes marciais andavam em voga. E dependendo das cidades, as pessoas já começavam a carregar no bolso ferramentas de protecção, como canivetes, sprays de pimenta, teasers de choque, entre outros, desde que a sua posse fosse permitida pelas leis locais.

No meu planeta, eu fazia parte da segurança real, ou seja, era uma qawwi altamente treinada. Mas mesmo assim, achei boa ideia frequentar a academia de judo, com Will e com Érica. Aliás, o judo ajuda as crianças a aumentarem as suas capacidades físicas e psíquicas, e contribuem com valores importantes, como companheirismo e respeito pelos demais.

Pensar que a minha família não tinha os mesmos poderes que eu e que estava à mercê da sua própria fragilidade, deixava-me fora de controle. E não é bonito ver uma qawwi descontrolada.

– Senhores, deixem-nos ir para casa.

Eles agitaram-se, cheios de pressa.

– Vão morrer porra, passem o dinheiro!

Dei por mim a cerrar os dentes e punhos.

– Senhores, eu não vou repetir-me…

Então, calaram-se. E súbito:

– É uma bruxa! – após o grito, e para o meu espanto, fugiram como quem foge de uma queda de granizo. Menos o que estava armado. Guardou a pistola, e continuou a olhar-me. Mas desta vez, nutria um súbito ardor excitado no rosto.

– Os teus olhos moça…

Foi nesse instante que percebi o que tinha causado a fuga dos outros. Sacudi a cabeça para fazer o efeito desaparecer. É que quando fico alterada, as minhas reacções manifestam-se nos olhos que cobrem-se de um manto azul.

– És um deles, és uma qawwi! – constatou o outro na mesma incontrolável avidez – Estás com Vallen!

O sentimento anterior foi substituído por um medo de proporções alarmantes.

– Como… como o senhor sabe sobre os qawwis?

Não respondeu. Apenas sorriu e imprimiu velocidade quando correu em busca dos outros. Parecia feliz com a descoberta. Demasiado feliz.

Apreensiva, segurei a mão de Will.

– Depressa… temos de ir.

**

Em menos de uma semana, estávamos a fazer as malas. Cedo ou tarde Vallen ia aterrar naquela cidade. Se é que já não o tinha feito. Eu até poderia enfrentá-lo. Mas já não estava sozinha. Tinha de pensar na minha família. Mudar de cidade era a única forma de mantê-los a eles e a minha missão em segurança. Embora o confronto parecesse-me algo cada vez mais inadiável. Por essa mesma razão, optei por revelar um pouco mais do meu mundo a Will, ensinando-o a usar as flechas quentes. As armas dos qawwis. A resposta necessária, para o que há de pior no meu planeta.

Fui até ao jardim ver como ele estava a sair-se e nesse momento, uma flecha acertou um pequeno tabuleiro fixado há alguns metros. Assim que atingiu o alvo, a flecha desprendeu uma tira de fumo.

– Will… bravo!

Ele efectivamente já dominava as flechas quentes.

– Sinto-me heróico Linan, como um personagem dos jogos da fome

– Isto não é fome nem jogo Will! Mas sim… é uma arte saber usá-las! E se vamos casar, é justo que saibas lutar como um qawwi, para proteger a nossa família.

Will baixou o braço, boquiaberto.

– Vamos?

Devolvi um olhar que não logrou ser tranquilo.

– Ou mudaste de ideias?

O rosto dele ganhou um espectro de tons radiosos, como se tivessem acendido em lenta sucessão as luzes decorativas de uma festa. Com um só braço, atraiu-me para perto de si e murmurou ao pé dos meus lábios.

– Fazes de mim o homem mais feliz do mundo, Linan. E podes ter a certeza que – ergueu o arco – ninguém vai meter-se com a nossa família – e deixou outra flecha escapar.

Desabafo de uma qawwi

#14|Como um defensor do ambiente propôs-me em casamento

ambientalista

A sesta depois do almoço apenas serviu para trazer-me pesadelos. Vi um bando de ikras liderados pelo qawwi Vallen, invadindo a terra e destruindo os qlubs. Ainda bem que foi só um sonho. Enquanto conseguir manter-me escondida aqui na Nova Zelândia, Vallen não poderá interferir com a minha missão. Para afastar o pesadelo, decido tomar um banho. Estico o braço na direcção da toalha pendurada na cadeira e, num segundo, ela salta para a minha mão.

Já mais fresca, percorro a casa. O silencio é atípico. Érica não está a correr, nem a ver desenhos animados. O que andará ela a fazer?

– Coloquei-a de castigo, portou-se mal outra vez – explica-me Will, que está na varanda a pintar um móvel. Parece-me uma peça nova.

O sol desce na linha de horizonte, sobre a baía oriental. Os últimos raios acendem a cidade, deixando-a num esplendoroso doirado. Vistos do lado da costa, os edifícios parecem estar tão somente a acordar. É como se o próprio planeta terra dançasse uma valsa, em homenagem àquele humano que mudou as minhas convicções.

– Chega perto, Linan – pede-me Will – Vê se gostas disto.

Observo o móvel. É feito de papelão e pintado de esferas azuis, a minha cor favorita.

– O que é isto?

– Precisavas de uma cómoda nova e decidi fazer uma para ti. É de material reciclável. Agrada-te?

Humm. Este Will tem muita classe. Não me refiro a forma sedutora como ele dobra as mangas da camisa. Falo das suas ideias. De como ele as comunica, do entusiasmo no seu olhar. Tudo nele atrai-me. Incluindo as suas manias e os seus defeitos. Will é teimoso, é atrapalhado, mas é também equilibrado. Se há humanos que ainda podem salvar os qlubs, ele é um deles. O seu amor por animais, por exemplo. É enternecedor. Assim como é a sua paixão pelo mar. Will preocupa-se com o ambiente. Em casa, decretou que quem deixar as luzes acesas sem necessidade, pagará uma multa. Incluindo a pequena Erica. Ele ensina a filha a não desperdiçar água. Recorda-nos sempre de desligar as tomadas e os aparelhos quando não estão a ser usados. Anda de bicicleta, não apenas por fazer bem e ser económico, mas por ajudar a reduzir a poluição. E é ele quem está a incentivar-me a abandonar certos hábitos alimentares. Quem diria! Eu, uma qawwi, a cair nas armadilhas dos apetites mundanos. Lastimável. Facto é, que a comida que se consome neste planeta e a forma como ela é produzida determina a saúde tanto dos humanos como desta terra. Se os humanos não começarem a comer mais fruta e vegetais do que carne e açúcar, será impossível alimentar uma população que vai crescer até 10 biliões no ano de 2050 (se até lá os qlubs ainda existirem).

Olho de novo para a cómoda ecológica  de papelão.

– Oh Will, não existem dois como tu!!

– É só uma prenda simbólica para comemorar o dia de hoje, meu amor.

– O dia de hoje? – o  coração salta-me uma batida – é meu aniversário?

Eu só comecei a celebrar os anos por causa de Will. Em Stefanotis estas coisas são diferentes e eu nem sequer sabia o dia em que tinha nascido. Todavia, há outras datas em que os humanos trocam presentes. Perante o olhar decepcionado de Will, sinto o estômago contrair. Oh. Será que esqueci de alguma coisa? Será que…

– Faz dois anos hoje desde que nos conhecemos, Linan.

Se a vergonha é um arco íris, o meu rosto adquiriu todas as suas cores. Como pude esquecer-me? Foi há dois anos que o vi pela primeira vez, acreditando que ele fosse um sem abrigo. Neste planeta vivemos rodeados de pessoas, de amigos, de festas. Mas Will ensinou-me que é bom ter alguém com quem contar, quando as festas terminam. Com ele aprendi a sentar no banco de um jardim, ao lado de alguém, apenas para respirar, sem ser preciso falar, apreciando somente o silêncio do amor.

E mais tarde descobrimos a verdade. Ambos. Ele não era um sem abrigo. E eu, não era uma humana. Para Will, a verdade foi mais esmagadora, mas o amor acabou por convence-lo  a aceitar-me. E embora ele jure querer-me por perto, percorre-me sempre um grande receio: eu não estou a conseguir ser humana o suficiente para o corresponder.

– Perdão, Will – apetece-me chorar – não me lembrei e não preparei nada especial para oferecer-te, mas… vou improvisar. Que tal um super delicioso jantar, com mariscos, como tu gostas!

O seu sorriso malicioso preocupa-me.

– Eu sei muito bem como podes compensar. Mas vá, experimenta aí as gavetas da cómoda, vê se te agradam e se funcionam bem.

Abro-as de par em par.

– Funcionam, claro, até porque…

Ao deparar-me com uma caixinha veluda na terceira gaveta, fico muda. Contenho-me. Segundo a seguir, escancaro-a.

A primeira vez que Will colocou um anel à minha frente, causou-me pânico. O sentimento continua. Mas agora é acompanhado por uma espécie de agradável surpresa. Fascinação, para bem dizer.

– Will! Continuas com esta ideia? Mesmo que…

– Sempre. Tu e a Érica são a minha família. Vamos oficializar isso de acordo com as leis da minha terra e do meu coração, por favor. Dá-me esse presente.

– Will…

– Eu sei. Linan, eu sei.

Ele sabe. Sabe que eu sou uma qawwi, e que tenho o poder de controlar a mente humanas. Tem noção de que a qualquer momento posso teletransportar-me para outro lugar. Que ao contrário dele, vou demorar séculos a envelhecer. Que tenho uma missão. Que corro perigo. E que ele também, ao meu lado, corre perigo.

– Eu sei – repete – Somos diferentes e enfrentaremos dificuldades. Haverá alturas em que lutaremos contra forças maiores. Mas o derradeiro fim da vida é o amor Linan, e eu não vou abrir do nosso. Enquanto respirar, vou estar ao teu lado.

Então, avança para um beijo terno, mas a minha indecisão impede-me de corresponder. Mesmo que a minha missão seja um sucesso, como fico eu, se daqui a 100 anos tiver de perder este humano? Sou uma qawwi, mas saberei algum dia voltar a estar no universo sem ele?

Will insiste no beijo. Então, a mensagem penetra. Quer dizer, ela não penetra. Ela já lá estava. Os beijos apenas ajudam a mostrar os sentimentos adormecidos, cuja a intensidade as vezes esquecemos. A ânsia e a confiança que nos apertam nesse instante parecem maiores do que o próprio universo.

– Casa comigo – repete ofegante, depois que separa os seus lábios dos meus, o anel encontrando um lugar confortável no meu dedo.

O gesto é como um golpe para a cratera romper e impulsionar uma força nos meus olhos. Sinto o meu rosto molhado. Não há outra opção para salvar-me daquela gigantesca onda, senão responder:

– Sim, Will. Mil vezes, sim.