Desabafo de uma qawwi

#Inédito# Partículas de Tamarino

Narrado por Lindiwe

De vez em quando é preciso recuar, parar o ponteiro, por forma a fazer o relógio seguir. É o que sempre dizia o meu  avô. Hoje, a pressão de descontinuar, desandar, voltar a sentir, não é apenas esmagadora. É real.

– Então? Se pudesses revisitar alguma época, qual escolherias? – pergunta-me Linan.

Não titubeio.

– Maputo, anos 90, alvoroço das primeiras eleições multipartidárias, minha juventude, baixa da cidade, por favor.

– Ok, Lindiwe! Dá-me o braço. De resto, sabes o que fazer.

Respiro fundo. Estou curiosa para saber se de facto, estas tais partículas de lua verde de tamarino vão funcionar em mim, mera mortal. Medo. Este não me falta. Nem sequer razões. Linan foi muito específica quanto ao mecanismo desta sua tecnologia, porém, o meu intuito é desobedecer.

Seja como for, fecho os olhos, conecto-me ao aparelho e permito que ela esfregue no meu braço o pó prateado. Num instante, mergulho no escuro. E num clic, divido-me.

Sou duas dentro de mim. Sou ontem e amanhã. Estou sólida e gasosa, tanto quanto verde e madura. A minha pele rejuvenescida, as mirabas novinhas, as lágrimas nos olhos apertados, brilham no espelho do meu quarto de outrora. Mas a minha metade, a gémea nunca nascida, que mira a outra no espelho, já traz consigo as marcas e a confiança cobrada pelos anos. Tem características de uma mulher que amadureceu.

Limpo as lágrimas. Afinal de contas, elas pertencem à outra Lindiwe, a Lindiwe jovem, dos anos 90, que chorava por tudo e por nada. Que venerava o drama doce-amargo próprio da idade.

A melancólica “end of the road” chega ao fim e o gravador dispara. Teria de me inclinar sob a cómoda empoeirada, para virar a cassete para o lado B. Mas apenas me rio. A outra metade de mim já conhece a era digital. Desaprendeu a manusear fitas de cassete.

Um telefone em madeira e metal desperta no corredor. Trim trim. Parecem ecos medonhos que querem assombar. E o sentimento de pavor repete-se, no passado, no presente. Trim trim. Como dois consecutivos golpes na alma. Trim Trim.

Abro a porta, sabendo perfeitamente o que vai acontecer: o meu pai aproxima-se do telefone e levanta o auscultador:

– Alô! Sim? Quem quer falar? Fatinha está muito ocupada, não pode vir ao telefone. Aconselho a não telefonar mais!

O telefone tomba no gancho.

Trim trim.

– Olhe menina, já não lhe avisei para parar de telefonar? A Lindiwe não pode fazer mais parte do grupo. Não, não podes falar com ela, nem por três minutos, nem por três segundos! Certíssimo!

O telefone volta a tombar no gancho.

“Pai, por favor, a Ana apenas quer despedir-se, ela vai-se embora da cidade”.

Tu não vais manter amizade com essa moça, Lindiwe! E enquanto estiveres debaixo deste tecto, terás de obedecer-me!

Teria sido assim a conversa que se seguiria entre mim e o meu pai. Mas as palavras já não existem dentro de mim. Tenho pressa, preciso mudar o rumo dos cometas. Decido não enfrentar o meu pai
e deix-o afastar-se, com o corpo pejado de fortes convicções.

As memórias queimam na minha pele. Pois que naquela noite, eu ainda não sabia que um dia seria adulta, livre. Apenas conhecia o desespero. Apenas sabia-me presa aos desígnios de ter nascido
mulher. Ainda que Pedrito fosse mais novo, era ele quem dava as ordens. Não podia passear se ao mano mais novo não apetecesse acompanhar-me. Naquela altura eu era tida por um animal indomesticado, por gostar tanto de cuba libre, de sair com as amigas e de amanhecer a dançar.

O meu braço comicha, o efeito das partículas de tamarino está a terminar e o meu tempo de viagem a esgotar-se. O peito se me dilata.  Espreito pela janela do quarto. Lá está, o menino da barraca! Continua naquela praça, vendendo sonhos, amendoins e matoritori, entre as luzes intermitentes, no pulsar da noite que parece estar somente a acordar. Era sempre assim, especialmente às Sextas, quando o “tumbai” jorrava das colunas do minigolfe e sacudia as saias das moças que trepavam grades para irem às escondidas, abanar os corpos na famigerada boate.

O meu coração bate mais depressa. Não tarda para Inilda, Ana e Matilde estacionarem. Naquela noite, naquele exacto minuto, a outra Lindiwe estaria a vestir as suas boca de sino verdes, os
tacões favoritos, pintando os lábios de vermelho e metendo uns quantos quilos de audácia na bolsa, para mais uma aventura com as amigas. Não desta vez.

Ouço a buzina prolongada e reconheço o código.

Com o medo a escorrer-me pelos dedos da alma, avento-me no ar gelado e apresso-me ao carro. Ao contrário do que fiz no passado, detenho-me somente à janela.

– Meninas, devem todas voltar para casa, agora mesmo!

– Mas Lindiwe…

– É importante, Ana! Se formos à festa… uma de nós vai, vai…o resto da locução perde-se no vácuo dos meus próprios múrmuros.

Pasma, a minha amiga de outrora desce do carro.

– Isso tudo é por causa dos teus cotas? É a minha despedida, sabes que tão depressa não volto para Maputo, não sabes?

Ana não fazia a remota ideia. Nem poderia.

– É por querer ver-te bem, minha amiga! Tudo vai…

Não consigo completar a frase, pois o mundo esvanece numa neblina fresca, a medida em que os carros, o luar e a alegre cidade desaparecem num rodopio para dentro do impiedoso tempo. Os ponteiros seguem. Sonoros tic tac, tic tac, anunciando o meu presente. As pálpebras pesam quando abro os olhos. A minha blusa cola-se-me ao peito de tão encharcada. Pouco reconheço ao meu redor. Somente ela, Linan.

– Onde estamos?

– É a tua casa, Lindiwe. Como é que foi a viagem?

Percorro atabalhoadamente tudo em que esbarro, até encontrar um telemóvel. O meu.

– Linan! – balbucio vasculhando a vasta lista de contactos – acho que consegui! – já ouço o longínquo toque conectando o número de Ana. A voz do outro lado, que quase nada mudou nos últimos anos, confirma-me o impossível. Arranca-me sem freio uma lágrima.

– Ela está viva, Linan – anuncio – A Ana vive! O acidente não aconteceu! O meu passado é outro!

– Hey, calma ai – Linan parece estarrecida – eu disse-te para teres cuidado. Não é assim que as partículas funcionam… elas…

– Shiu, Linan! – enfio-me depressa num casacão grande – está tudo perfeito! Sou-te tão grata! Vamos sair, para comemorar?

Source Image: DigitalArtInspiration

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