Outras maravilhas humanas

ALDINO MUIANGA: O ESCRITOR DAS GENTES ENTRE A TRADIÇÃO E A SUBVERSÃO FICCIONAL

Maiane Pires Tigre[1]

1.Maiane Tigre – Poderia classificar o conjunto da sua obra em fases, entre a produção de contos, crônicas e romances, considerando a preponderância de temas, estilos, e as marcas da tradição ou de ruptura presentes em seus livros, de acordo com o período abordado, estendendo-se da década de 80 até 2022?

Aldino MuiangaComo em tudo, há sempre uma fase incipiente no início de qualquer empreendimento. Existe uma fase debutante, de timidez e receio de fazer “as coisas mal”. Sabido que é que uma primeira obra pode ser a perdição do seu autor, sempre usei de cautela, no início da minha carreira literária.  Esta começou como já o disse, por diversas ocasiões, com a produção de poesia. O projecto frustrou-se, porque toda a minha produção se perdeu em inundações, que assolaram o bairro onde residia. Era uma espécie de aviso que o meu caminho real não era o da poesia.

    Até 1987, nada escrevi que se chamasse literatura. O meu empenho residia em leituras, em exercícios de leitura, quase doentios. Queria escrever “bem”, veicular as minhas mensagens, de modo claro, profundo, penetrante e dissuasor. Durante as minhas leituras, apercebi-me que na literatura “moçambicana”, em geral, as referências que se faziam em relação à nossa cultura africana e (moçambicana em particular) eram, diria, exóticas, folclóricas, como curiosidades para consumo de turistas e curiosos. Isso causava-me muita estranheza e tristeza ao mesmo tempo. Pouco ou quase nada mesmo se escrevia sobre “nós próprios”, o que estava na essência cultural do ser moçambicano e africano.

     Obviamente que antes da declaração da independência do nosso país produziram-se obras de muita relevância, mensagens de protesto e de clamor pela autonomia nacional, pela afirmação de uma identidade que era sonegada pelo colonialismo. Foram obras que marcaram o nosso panorama literário até à independência nacional, como já o afirmei. Tive o privilégio de crescer num meio suburbano e de exercer actividades clínicas em meios rurais. A experiência que adquiri naqueles universos conferiu-me o caudal de informações de que necessitava para iniciar uma carreira literária que seria, em simultâneo, uma simbiose do que aprendera dos livros, e do que seriam os meus próprios conhecimentos sobre as culturas regionais e tradições específicas do indivíduo moçambicano e, por extensão do africano. Era um trabalho de pesquisa que decorria de um modo espontâneo, porque era natural. Absorvia as informações que colhia de diversas fontes: dos meus pacientes, de chefes e médicos tradicionais, companheiros de trabalho e demais fontes derivadas de convívios. Encontrava-me face a face com a verdadeira cultura do meu país, a vertente ignorada e escamoteada da nossa identidade.

     Assim surgiu a necessidade de proceder a uma rotura com as linhas oficias de fazer literatuta. Eu tinha a minha “literatura” por fazer, aquela que se fundamentava no real, isto é, na vida verdadeira do povo verdadeiro. Quis distanciar-me dos paradigmas correntes e seguir uma linha original: a de ser um porta-voz das estórias do povo, sem que isso signifique petulância ou complexo de superioridade. Sentia-me na obrigação de fazer “diferente”, e essa diferença começou a manifestar-se nas minhas primeiras publicações.

     Durante aquela fase incipiente consultei e partilhei alguns dos meus contos com autoridades na esfera literária de Moçambique. As primeiras impressões foram de espanto e de encorajamento. Todos diziam:  “explora esse veio”, “os temas são originais”, “a voz das nossas avós está presente nesses contos”, “os teus contos são autênticos nkaringanas”. Não tinha como vacilar. Prossegui a produção de contos com vigor, imbuído pela certeza de que as mensagens tinham eco entre o público leitor; e não só, que havia representatividade nos anseios dos leitores em “encontrarem-se, identificarem-se e interagir” naquelas narrativas. Eram afinal, e finalmente, as suas próprias estórias. E, aqui, residia a rotura de que falas, a quebra de convenções, a percepção de que a Literatura era um domínio do Ocidente, e privilégio para consumo de castas “cultas e civilizadas”.  A minha era a recusa e combate ao estereótipo ocidental de que tudo o que é “africano é folclore”.

Como já o afirmei, os meus primeiros escritos foram contos. Assim o fiz, porque por algumas razões: a primeira sendo porque a experiência me ensinava que o conto é o gênero primordial e muito eficaz na veiculação de uma mensagem, de uma estória. Nós, africanos, somos contistas natos, por excelência. Isso está timbrado na nossa matriz genética. Comunicamos uns com os outros, através de estórias curtas, argumentamos através de exemplos quotidianos, de adágios, transmitimos conhecimentos através dos nkaringanas. Essa é a nossa forma de estar, de ser e de comunicar. 

      A segunda razão pela opção do conto era meramente pessoal: não tinha experiência de escrita que me colocasse à-vontade para a elaboração de textos longos. Tinha “medo” de escrever. Embora tivesse aquele arcabouço de leituras, não me sentia em terreno seguro escrevendo novelas ou romances. Preferi textos curtos, com mensagens condensadas. Um leitor ou analista atento pode verificar que nos meus primeiros contos não há diálogos, mas apenas descrições. Sentia-me retraído a colocar os protagonistas a dialogar, tecnicamente falando, encontrava-me manietado pelo medo de errar. Felizmente, com o tempo e com a aprendizagem fui vencendo aquele impedimento até chegar à novela e ao romance.   

   As temáticas sobre as periferias, assim designadas para inferir rural e subúrbios, são dominantes na minha escrita  por razões que têm a ver com a afirmação identitária de grupos sociais marginalizados. Ninguém fala do camponês ou do suburbano como indivíduo com carácter e dignidade. Procuro identificar os valores desse indivíduo e colocá-lo na tribuna de um cidadão,  que possui uma história, que detém valores das suas tradições e tem uma cultura que não é inferior a nenhuma outra. Vou-lhe dar um exemplo: em todas as sociedade existem narrações de violência doméstica e pública. Em Lourenço Marques as havia. Os autores desses eventos eram (os de violência pública, em particular) eram os chamados mabandido. Esses eram jovens que provinham do campo, (majoritariamente de Gaza e Inhambane)  e trabalhavam como empregados domésticos dos colonos, vítimas diárias de abusos físicos e verbais dos patrões. Outros eram operários de construção civil, trabalhadores das fábricas  ou casas de pasto, também vítimas de semelhantes abusos. Todos eram catalogados de incivilizados, criminosos à margem da Lei e das normas de civismo. Não me recordo de ter lido, vez alguma, algum relatório de investigação que tenha revelado a razão profunda, para a disseminação de episódios de violência protagonizados por aqueles indivíduos, em público, e nas suas residências. Havia um problema de desajustamento social, conflitos de culturas, para os quais não havia autoridade ou psicólogo atento em decifrar aqueles desnivelamentos socioculturais. Acreditava que existia (e sempre existirá) um território onde residem valores culturais no indivíduo, que as sociedades ignoram e repudiam como obsoletas e obscurantistas. São esses valores que em muitos dos meus contos procuro trazer à tona. É talvez, por essa razão, que alguns analistas consideram a minha obra em geral, como voltada para o tradicional. Não o nego, porque é aí onde reside a essência dos meus escritos: chamar a atenção para o respeito pelos valores que cada um de nós detém, independentemente da sua origem social, da sua cultura e das suas tradições. Os procedimentos daqueles ditos “criminosos”, mais não eram do que uma sublimação à carga de violência que lhes era infligida pelos seus patrões, pertencentes a uma “civilização superior e diferenciada”. Neste considerando, aconselho a leitura atenta do conto “Operação Djodjo”, do livro O galo ruivo (2022).

     Creio que para um melhor entendimento de uma estória, o estilo e a linguagem devem ser as mais adequadas e apropriadas à mensagem que se pretende veicular. O próprio cenário é fundamental para colocar o leitor no ambiente certo, pretendendo apresentar a estória no universo onde os eventos decorrem. Claro que, ao longo desta experiência, ocorreu uma evolução no uso da linguagem. Aprendi e aperfeiçoei determinadas técnicas da narração que me permitem usá-las como instrumentos para maior eficácia na passagem das mensagens. A escrita é um acto dinâmico: quanto mais se escreve, mais se aprende, e menos erros se cometem. O meu lema é: para cada estória o seu estilo e a  sua linguagem. Isto é fundamental, porque evita-se o ridículo do uso de uma fraselogia longa, desnecessária e desconexa para descrever um acto simples, e tornar complexo o entendimento de um evento. Gostaria de dar um exemplo: se hoje escrevesse o livro “Xitala Mati” fá-lo-ia com aquela simplicidade e aquele encanto que o livro desperta? Se tivesse escrito o romance  Contravenção (de 2008), em 1987, teria conseguido conferir-lhe aquela acutilância que hoje tem? Penso que o momento histórico e a experiência ajudam a definir as técnicas de elaboração do texto, o estilo e a linguagem em simultâneo, sem esquecer o momento espiritual e emocional do autor. Ainda iremos falar sobre isto um dia.

   A minha escrita não de limita a narrações de estórias sobre os meios rurais e suburbanos. Não há dúvidas de que aquelas são dominantes, mas não exclusivas. Temos o exemplo do romance “Contravenção”. Considero-me um escritor multifacetado, mas com timbre marcado pela tradição, pelo suburbano e pelo rural. Tenho crónicas publicadas em revistas nacionais e internacionais sobre temas que nada têm a ver com publicações semelhantes a contos ou novelas. E seria contraproducente fechar-me numa redoma, feito curandeiro de cubata a velar espíritos de antepassados e, nesse exílio, deixar a vida fluir no universo do mundo em que vivo. Não! Estou atento ao que me rodeia, ao que me preocupa e, sobretudo, qual o contributo moral e social que posso prestar à sociedade em que vivo, que mensagem posso transmitir sobre os valores de que cada um de nós é portador, e como usá-los para um melhor e mútuo entendimento e tolerância cultural. Sou um idealista por natureza e por formação.

2.Maiane Tigre – Do risível à profusão de temas utilizados, quais as distintas faces do escritor Aldino Muianga, isto é, o Aldino continua o mesmo da década de 80, com o seu livro de estreia Xitala-mati, de 1987, ou há uma substancial diferença entre a escrita do charrueiro Khambira Khambiray e o prosador inserido no cerne da literatura contemporânea?

Aldino MuiangaTem de haver diferença. Neste caso, uma grande diferença. Afirmei antes que o processo de escrita sofre gradações, existe uma evolução nos processos de redacção dos textos, na selecção dos temas e seu tratamento. Aqui, volto a dizer, os momentos emocionais também variam e determinam a qualidade do produto final, que é a narrativa (conto, novela ou o que for). De 1987 até hoje, beneficiei-me de uma transformação na visão do mundo e do universo em geral. As sociedades evoluíram em vários sentidos. E eu, como membro de uma sociedade, tive de me ajustar àquelas transformações e conceber uma nova visão do mundo. E é nesse mundo onde me inspiro e fotografo as minhas narrativas, com uma linguagem renovada, actualizada, e ao entendimento do leitor que me leia. Considero-me parte de uma sociedade que se transforma. É esse o meu posicionamento, o de não ficar por detrás da História.

     O charrueiro Khambira Khambiray foi o cartão de apresentação de um autor que pretendia estabelecer uma rotura dos preconceitos no modo de fazer Literatura, pela temática e pelo tratamento da linguagem, com tonalidades e impregnações do conto tradicional. Aquele “morreu”, e seu lugar nasceu o Aldino Muianga do “Xitala Mati”, autêntico, detentor de uma vontade de dar a conhecer ao mundo a verdadeira face da nossa identidade, como moçambicanos e africanos. Esse tem sido o estandarte na minha jornada, como um Escritor comprometido com o seu povo, com a valorização das suas tradições, da sua cultura, da sua identidade, no que isso significa, em termos de respeito e reconhecimento daquilo que sou na totalidade, no meu lugar de nascimento, na lingua que falo, nas minhas crenças, nos modos de inserção na sociedade e no modo como concebo o mundo e o universo.

  Repare que o que escrevo, de modo algum, pode ser considerado uma frente de confrontação contra quem quer que seja, ou contra os ditames doutras culturas. Longe de mim tal ideia. O que proponho nos meus escritos é apenas, e isso somente, respeito e reconhecimento das culturas populares, sejam elas rurais, suburbanas ou urbanas, meios que nos conduzam a uma harmonização e equilíbrio nas sociedades em que todos somos chamados a compartilhar experiências, sem pejos, nem descriminações.  Isso somente.    

     Nós, moçambicanos, somos uma sociedade multicutural, com uma riqueza e um colorido étnico e racial singular. Se, no meu caso, optei pela via de exploração do veio rural e suburbano, existem outros escritores que terão optado por outras vias, que é salutar. Todos contribuímos, cada qual dando o melhor de si, para fazer deste nosso país culturalmente multifacetado, um lugar onde cada um dos seus cidadãos se sinta parte e parcela de uma Nação da qual se orgulhe.    

3.Maiane Tigre –  Qual a relevância da cultura moçambicana no conjunto da sua obra? O conto é a pedra de toque de sua prolífica atuação literária. De acordo com Can (2015, p.11),“faz do gênero […] um lugar de permanente reinvenção.”  Como se dá essa reinvenção e de que modo consegue evitar a repetição ao longo dos anos, já que é dono de uma vasta produção, em torno de 19 livros, entre romances e coletâneas de contos, dentre os quais se destacam: O domador de burros e outros contos, (2015), A noiva de Kebera, contos (2016), Asas quebradas, romance (2019)?

Aldino Muianga – De acordo com muitos analistas literários, a minha obra tem sido uma referência em pesquisas sobre vários aspectos, nomeadamente, a simbiose entre o conto tradicional e o conto clássico. Naquele contexto, o conto é a forma mais eficaz de expressão popular, em uso nas comunidades, desde os tempos seculares. Como poderia eu inverter esse processo, senão seguir as suas dinâmicas e modernizar os meios de narrar? Para o povo, o conto é um estandarte na comunicação social. De passagem, posso dizer que em muitas aldeias do campo remoto existem competições de contos tradicionais. Assim se perpetua uma tradição secular baseada na formação de peritos no que tange à transmissão e perpetuação da História dessas comunidades.  O conto, sim, é uma pedra angular, o fulcro onde se articula a oralidade. Foi desta que as comunidades conheceram eventos do passado, dos conflitos entre etnias, de todos os eventos seculares arquivados na memória dos povos. Sem os benefícios dos registos grafados em arquivos históricos, aquelas memórias ter-se-iam perdido e esquecido nos túmulos, onde jazem os seus protagonistas e suas  testemunhas.    A criatividade é essencial em qualquer área de produção artística. A repetitividade instala-se onde não existe criatividade. Penso que existem sempre formas de criar novas situações, novos enredos, invenção de novos protagonistas, com diversas intervenções no texto. Isso é o que cria esse dinamismo no processo de escrita do autor. Este não pode ser estanque, à espera que os acontecimentos lhe cheguem à mão. A busca, a pesquisa de novas estórias é primordial na obra de qualquer criador artístico. Um Escritor é um artista por excelência. Nessa qualidade, ele capta sensibilidades e memórias; reinventa e reproduz, sonha e concretiza. Esse é o processo de reinvenção que em mim decorre ao longo da minha produção literária.  Gosto de dizer que um Escritor tem seis sentidos, sendo, o sexto, o da reinvenção do real.

4.Maiane Tigre – O mítico, a espiritualidade, o sobrenatural, a dimensão telúrica, a presença de espíritos convivendo com os vivos, são alguns dos ingredientes fundamentais na composição de suas narrativas. Portanto, qual seria a hermenêutica ou linha de leitura mais conveniente para interpretar as histórias dessas gentes, melhor dizendo, qual seria a sintaxe do sonho utilizada na arquitetura dos seus textos?

 Aldino Muianga – Nas culturas africanas, e a moçambicana não foge como excepção, a relação entre vivos e defuntos é intrínseca, presente e concreta. Existe, entre nós, a concepção de que os defuntos estão presentes na vida de cada um e determinam de modo subtil o deselance de eventos do quotidiano. São exemplos correntes nas famílias, e em indivíduos, em particular, a atribuição de fatalidades, de doenças prolongadas, de desemprego, de infertilidade e outros malefícios como sinais de intervenção de defuntos.

     A relação à que me refiro, manifesta-se pelo empenho dos vivos, em práticas de rituais de apaziguamento dos defuntos, aos quais os vivos se submetem e imploram pelo sua intervenção, para uma vida isenta de perturbações. O uso de amuletos, os rituais de invocação nos túmulos, os exorcismos nas cabanas dos magos, as práticas de autoprotecção contra o mau-olhado, são algumas das inúmeras práticas que o africano, de um modo geral, recorre para estabelecer aquela ponte entre si e os seus defuntos.

   Na minha prática clínica, testemunhei casos desta relação entre os meus pacientes, com os seus defuntos. Cito apenas alguns exemplos, que ilustram aquele compromisso entre vivos e mortos. Para mais detalhes, remeto o leitor ao livro “Hospital, contar clinicando, Volume I” a ser publicado em breve.

5.Maiane Tigre – Você acredita que poderia ser considerado um escritor da tradição, cuja escrita se circunscreve a um momento histórico específico do pós-independência, diretamente vinculada à Geração Charrua, um escritor da ruptura, que subverte o próprio estilo, ou se classificaria, justamente, como a intersecção desses dois momentos, tornando-se um prosador atemporal, que está além de fechamentos ou reducionismos estanques?

Aldino Muianga – Na minha obra está vincado o compromisso de seguimento de uma linha que se pauta pela narração de eventos ligados às culturas e tradições  nas comunidades do meu país. As tradições, as culturas, os mitos e todos os valores de espiritualidade sempre existiram, e são perenes. O que narro só pode deixar de ser novidade para quem anda desatento às dinâmicas das sociedades periurbanas e rurais. A literatura que ficção fundamenta-se nisso, no revolver da História das comunidades, independentemente do tempo onde ela (a História ou as estórias) possa ter lugar. Repare que no livro “A Noiva de Kebera” se descrevem eventos do período pré-colonial, como prova da atemporalidade da minha escrita. Não me cinjo a espaços estanques, como já o afirmei anteriormente. O que informa os meus escritos são fundamentalmente as culturas, as suas intercepções, os conflitos que esses cruzamentos geram, as soluções achadas para a conciliação destes universos aparentemente contraditórios. A rotura apresenta-se como a abertura de uma página inédita na linha temática, que privilegia o subúrbio e o campo como cenários onde desfilam protagonistas doutras culturas, que não as convencionais e catalogadas como  “superiores”.

6.Maiane Tigre – A figura da prostituta possui significativa centralidade no âmbito da produção literária moçambicana. Em Meledina ou a história de uma prostituta (2010), observa-se um retorno ao tempo colonial, na condição de romance histórico. Qual o enquadramento dessa obra, do ponto de vista da História de Moçambique? Este romance possui elementos que sedimentam a tradição literária do país, face ao papel transgressor desempenhado pelas prostitutas representadas na pena dos escritores da nova geração, como Rabhia, de Lucílio Manjate, e Shonga, de Pedro Pereira Lopes, personagens modelares da subversão?

Aldino Muianga – No livro em referência, a figura da protagonista Meledina simboliza o nível de degradação da Mulher, ela é a porta-estandarte de um exército de oprimidos pelo colonialismo na frente da exploração sexual. Naquele espaço e tempo colonial, a prostituição dir-se-ia institucionalizada, sindicalizada, um “bem de consumo oficial”, para as elites coloniais. “Meledina “ constitui-se como um valor que se assume como um simbolismo de dignidade como Mulher, mãe, e porque não? Esposa virtual do seu próprio opressor. A prostituição é um mal das sociedades, com desigualdades socioeconômicas, e Moçambique não foge a esse desiderato. Vivemos numa sociedade viciada onde impera a lei-do-mais-forte, na qual a Mulher assume um papel de serva, de sub-cidadã, de um instrumento avassalado por uma sociedade patriarcal.  É nesta corrente que alguns escritores do meu país focam algumas das suas produções sobre aquele problema e o seu impacto na sociedade. São sinais de protesto (e este é um dos papéis da Literatura) que, espero, tenham algum eco nos ouvidos de quem tem a responsabilidade de consertar os desconcertos deste País. 

7. Maiane Pires – Comente sobre a recente publicação do livro O galo Ruivo (2022), destacando as principais inovações, além de mencionar o mote primordial dessa narrativa. Quais são os projetos futuros voltados para sua carreira literária?

Aldino Muianga – “O galo ruivo” é uma colectânea de contos, que retrata o perfil sociocultural e económico dos habitantes do cosmos suburbano da cidade de Lourenço Marques e dos meios rurais. Naquela compilação, as narrativas denotam  uma nova dinâmica  na estruturação  dos textos, que se podem considerar como uma exploração doutros veios de ficção narrativa. Em alguns contos, o uso de metáforas e de trocadilhos confere um pendor poético original na linha de escrita a que habituei o leitor. Às vezes me pergunto se a poesia não estaria a ressuscitar dentro de mim… Continuo a escrever, tanto quanto possível, sempre à busca de novos elementos, com que enriqueça os meus escritos. Para o ano corrente, projecto publicar um romance, uma novela e uma colectânea de contos. Os livros já foram entregues ao Editor, para as protocolares valiações e processamento das burocracias pré-publicação.

Grato pela atenção.

Aldino Muianga

Pretória, 20 de Janeiro de 2023


[1] Doutoranda em Letras: Linguagens e Representações (UESC). Bolsista FAPESP. Membro do Grupo de Pesquisa GpAFRO: Literatura, História e Encruzilhadas epistemológicas. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2240-325X. E-mail: maiane.tigre@hotmail.com. Esta entrevista é o resultado parcial da minha tese de doutoramento orientada pela profa Dra. Inara de Oliveira Rodrigues (UESC) e co-orientada pela profa Dra Sara Jona Laisse (Universidade Católica de Moçambique – extensão de Maputo).

Fonte da imagem: Plataforma Mbenga

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