Ao final de sexta-feira tive uma síncope. O beijo foi o gatilho, mas a causa maior residia no lento acumular de incongruências que estava a testemunhar nos últimos dias. Cheguei à terra faz pouco tempo, e quanto mais analiso, menos sentido encontro neste planeta. O uso excessivo de carros, por exemplo. É um paradoxo que escangalha-me o cérebro. Além de agravarem o sedentarismo, estas máquinas são altamente poluentes. Sempre ouvi dizer que a poluição inquieta os humanos. Pela quantidade de veículos que prolifera pelas estradas, eu diria que essa preocupação é tão grande como o dedão do meu pé de qawwi. Seria exagero concluir que os humanos são vítimas intencionais de si mesmos?
– Pára de reclamar, mãe! Hoje em dia não se faz nada sem um carro – explicou-me uma das minhas filhas. – além do mais, ter um bom carro é uma questão de status.
– Status?
– Sim, mãe, status!
– Ah, status. – cocei a cabeça – Faz sentido.
Tinha que disfarçar, mas claro que não fazia sentido. No princípio, cheguei a pensar que o tal “status” fosse uma comida. É um conceito de difícil compreensão e na verdade, sigo sem entendê-lo. Será que significa vestir trapos feios, só porque são caros? Estar cercada de bens inúteis e sorrir como num outdoor terráqueo? Ou pior, costurar o rosto para mascarar as pegadas do tempo? Para mim isso tudo não passa de esquisitice. Ou então a minha inteligência qawwiana reduziu drasticamente com a viagem. Só pode.
– Mãe! O que se passa contigo? Nem pareces tu a falar! Sempre adoraste o teu mercedes e as plásticas que te rejuvenescem, qual é o problema agora?
A minha pretensa filha tinha razão. Mas ela não fazia ideia de que a figura diante de si não era a sua verdadeira mãe. Nem sequer era um ser humano. Era um ser alienígena, vindo de outro planeta, camuflado na mãe.
Para poder seguir a minha missão pela terra sem ser notada, principalmente depois da desastrosa aterragem em Maputo, teletransportei-me para dentro de um humano, em busca de um disfarce. Acabei assim no corpo e na identidade desta mulher. Nestes últimos dias, tenho sido esposa de um “empresário”, mãe de três “adolescentes”, “dona de casa”, com uma família cheia de “status”.
A minha filha lançou-me um olhar desdenhoso, pegou no telemóvel e foi perder-se pelas avenidas da cidade. Para quem nunca ouviu falar, o telemóvel é um dispositivo de comunicação que… não, esperem. Na verdade, o telemóvel é um órgão humano externo. Tão vital quanto os pulmões. Se quiserem causar um colapso à um humano, é só experimentarem arrancar-lhe o telemóvel. Difícil de imaginar, eu sei, mas já explico: enquanto no nosso planeta somos servidos pelas máquinas, aqui na terra elas é que são servidas pelos humanos. As máquinas escravizaram tanto os humanos, que até nos ritos sociais de confraternização, os humanos já não convivem. Apenas os telemóveis. Os humanos estão reduzidos à uma alarmante apatia. Mais recordam os zumbis do apocalipse tecnológico.
– Com licença, minha senhora – murmurou uma voz masculina, arrancando-me dos atribulados devaneios. Era o motorista lá de casa.
– Sim? Algum problema? – perguntei, vendo que o homem difundia aflitivamente a sua atenção para todos os cantos da luxuosa sala. Assim que percebeu que estávamos a sós, capturou-me e meteu os seus lábios carnívoros em cima dos meus. O meu peito trovejou de perplexidade e de nojo.
– Que raio está o senhor a fazer?
– Saudades tuas, meu docinho de coco.
– Docinho de coco? – a voz estava-me presa de pânico – eu sou casada, o senhor não sabe o que isso significa?!
– Ah meu docinho! Desde quando tal foi obstáculo para as nossas escapadelas? – Sussurrou com malícia, seus lábios feios e vingativos continuando a invadir a minha boca.
Foi nesse momento que me deu a síncope e perdi os sentidos, caindo no elegante tapete vermelho.
O planeta terra é um lugar cheio de regras. Uma delas, por exemplo, é que o casamento é um instituto sagrado, que obriga à estrita fidelidade entre duas pessoas. Talvez a dona deste corpo tenha um defeito de fabrico. Sim, é isso! Ela é um caso raro de avaria! Já imaginaram se de repente houvesse muitos humanos com uma disfunção assim? Não quero nem pensar.
@Linan