Desabafo de uma qawwi

#6| Negaton – Acidente Tecnológico

3 mins de leitura

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Lá se vão quase dois anos desde que cheguei ao planeta terra. Desespero-me por ainda não ter conseguido cumprir a minha missão, mas já estou mais acostumada. Capacitei-me na arte mágica de transformar cebolas em caril. Aprendi a fazer refeições diárias, a dar valor ao dinheiro, pese embora o abomine. Porém, continuo sem perceber a natureza do ser humano: é luz ou é treva? Perversidade ou amor? Inconciliável hibridez. Assim parece ser o ser humano.

Por bem da minha missão, decidi evitar ao máximo contacto com eles, mas julgo estar a falhar tal desiderato. A verdade é que cada vez mais fascino-me por esta espécie. Até fui acometida por alguns dos seus hábitos: passo muitas noites a dormir, e pelas manhãs bebo café, enquanto leio o jornal. É vergonhoso confessar, mas adoro o café. Quanto ao jornal, só o faço por necessidade. Há que procurar pistas da minha missão. O que incomoda-me é a moribunda e inglória tecnologia de imagem estática.

Estava eu sentada na esplanada dos tolos, à espera de um galão, quando li a notícia. Os meus lábios secaram. Será que eu tinha dado o tiro? Causei tamanha tragédia? Conheci a Gabriela naquela esplanada. Uma mulher simpática e apressada. De vez em quando esticávamos conversa e lembro-me perfeitamente do dia em que ela, cabisbaixa, contou-me o sucedido:

– Fui demitida Linan, estou desempregada.

Vale ressaltar que fiquei com pena. É que o assunto de emprego é muito sério para os humanos. É o sustento do seu dia a dia.

– Lamento, Gabi.

– Se eu pudesse mostrar aos meus chefes – Gabriela limpava uma lágrima sorrateira – se tivesse uma câmera naquele dia e filmado o que aconteceu, eles iam pedir-me desculpa!

Pobres humanos… ainda dependiam das lentes de câmeras fotográficas para registar as suas memórias. Comovida, abri a minha sacola e procurei a salvação para o problema de Gabriela: Negaton. Tecnologia do meu planeta que permite registar memórias a partir do próprio cérebro. Bastava unir o dedo indicador à lente, para começar a gravar. Ou então invocar recordações do passado e tudo transferia-se para o mundo exterior, em formato físico.

– Funciona de verdade?

– Certamente.

Numa assustadora inércia, Gabriela apenas lançara-me um olhar de desdém.

– É mentira! Se tivesses uma tecnologia capaz disso, estarias a vender e não a oferecer-me!

Contive uma risada. Toda a tecnologia que existe no meu planeta tem o único propósito de optimizar os qawwis. Nada mais. Nós não comercializamos o conhecimento. Mas tal parecia difícil de ser compreendido pela Gabriela.

– Quero apenas ajudar-te Gabi, és uma boa pessoa. Usa o negaton para resgatar a tua dignidade e o teu emprego. Mas guarda segredo! Não mostres a ninguém, e muito menos digas quem é que to deu!

Dias depois, Gabriela telefonara-me a agradecer. Experimentara o negaton, conseguira extrair do cérebro as suas memórias, e pôde exibi-las em formato de vídeo. Resultado: recuperara o emprego. A partir desse momento não parei de receber novidades. Gabriela clamava que negaton havia revolucionado a sua vida. Podia reviver quanto quisesse as suas recordações mais preciosas. Perder um churrasco na casa da sogra ou uma festa na escola dos filhos já não era um problema. Usava o negaton no marido e nos filhos. Fotos e filmagens no celular? Tudo ultrapassado. Com negaton, o cérebro passara a ser a câmera fotográfica. Até de madrugada, Gabriela telefonava.

– Linan, amigaaa!! Porque é que estás a perder tempo? Com esta tecnologia podias ficar rica, andar num BMW e não a pé! Negaton é a melhor coisa da vida! Porquê esconder?!

O incontrolável êxtase fez-me perceber que Gabriela estava a fazer uso excessivo daquela tecnologia. Aliás, quando deixei de receber notícias suas, devia ter desconfiado que algo descarrilara. Agora estava tudo explicado:

Jornal o Besteiral

Insólito: homem dispara contra a esposa por causa de um filme

O caso ocorreu na madrugada de segunda-feira. Os vizinhos relatam que o agressor, Mário dos Galhos, já revelava um comportamento bastante possessivo com relação a esposa. A vítima Gabriela das Inocências, 35 anos, foi baleada pelo marido que a surpreendeu a assistir um filme o qual, segundo ele, era prova de infidelidade da esposa. O agressor diz que foi incapaz de controlar o acesso de ciúmes, já que a esposa estava a reviver memórias com outro homem do passado, gravadas através de um dispositivo chamado Negaton, tecnologia de ponta com a capacidade de reproduzir memórias humanas. “Errei, sim senhor, mas não nasci para ser chifrudo” – desabafou o autor do crime. As autoridades estão agora a investigar a veracidade dos factos, a possível existência de uma tal tecnologia nestes moldes e a respectiva origem.

 Respirei fundo e fechei o jornal. Foi então que dois polícias entraram na esplanada. Visto que o meu radar de qawwi avisou que eles vinham atrás de mim, juntei os braços em frente ao corpo e teletransportei-me para outro lugar. Os humanos não estão prontos para isto.

Linan

(Inspirado na série black mirror)

Desabafo de uma qawwi

# 4| O Apocalipse dos Corais

(4 mins de leitura)

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Após mergulhar na faixa com milhares de recifes e de ilhas continentais, permito-me uma pausa para que o cérebro absorva com clareza as cores do fundo do mar, luzentes como uma aurora boreal. Os corais vivem em colônias e fazem barreiras que sustentam o lar de diversos seres vivos. Será que os humanos compreendem a importância e a magnitude dos amiguinhos que habitam nestas águas? Sem pressa, percorro as avenidas e autoestradas marinhas, esbarrando com tartarugas e golfinhos, peixes e serpentes marinhas. Carlota baleia, incontestável rainha das águas, desliza na sua majestosa grandeza em busca de comida, enquanto dugongos acasalam pelos cantos recônditos do mar. Então, inesperadamente, caio num abismo. A maré torna-se escura, domada por gemidos. Criaturas moribundas, esbranquiçadas, soltam graves queixumes, numa lenta agonia. Baby-coral é um desses seres. Tão pequeno, está gravemente doente e os seus gritos não passam de apelos de socorro que se perdem nos ecos das ondas espirais do oceano. Ao lado de Baby-coral, jazem centenas de corais que sucumbiram à violência do calor.

– Nem sempre foi assim! – confessa Baby-coral tristonho, órfão de pai e mãe. Aos prantos, mostra-me através de um registo gravado no seu DNA, uma memória dos tempos em que vivia em ambiente de festa, quando eram todos saudáveis, antes da tragédia abater-se em suas vidas.

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Fonte: https://airis.life/bleaching-threats-to-the-great-barrier-reef/

Baby-coral era ainda pequeno quando a sua família e quase toda a geração foi saqueada durante uma captura ilegal. Os que restavam, se não estavam a morrer, rogavam aos deuses dos oceanos, por um milagre que os salvasse do apocalipse que descera sobre os recifes. É que nos últimos dois anos, metade dos corais haviam passado pelo processo de branqueamento (perda de pigmentos e de algas associados aos tecidos) e hoje, só sobravam pálidas sombras do que eles tinham sido um dia.

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Fonte: https://airis.life/bleaching-threats-to-the-great-barrier-reef/

Baby-coral e outros corais vivem em permanente pesadelo. Graças a queima de combustíveis fosseis e de outras coisas pouco sensatas, vieram as alterações climáticas que acabaram conduzindo ao aquecimento das águas e por fim, a catástrofe que agora dizima em massa os corais.

– Pobre Baby-coral. A minha alma se compadece. Que posso fazer por vocês?

Tem de haver alguma forma de reverter a situação. Sou recém-chegado ao planeta terra, mas ouvi dizer que alguns líderes comprometeram-se a reduzir as emissões de CO2, pese embora alguns presidentes como Ronald Trunfão, contra a lógica razoável, não querem este acordo.

E se eu pedisse aos meus superiores para intervirem? Não, não poderia, tal seria contra os princípios do meu planeta.

Baby-coral engole as lágrimas e tenta tranquilizar-me:

– Espere senhor, há outros humanos como você, que querem ajudar. Temos recebido visitas de pesquisadores, rumores correm de que estão a preparar e a testar laboratórios que poderão nos socorrer – é a primeira vez que noto alguma esperança na voz de Baby-coral – e se as temperaturas baixarem, quem sabe? Talvez haja um futuro para nós. Vá meu amigo, fale com os outros, interceda por nós! É possível encontrar um equilíbrio!

Anuo e deixo-o com uma promessa silenciosa, antes de começar a nadar de regresso à Terra. Sim, há uma chance de eles sobreviverem, se todos os humanos, biólogos, cientistas, líderes, organizações e pessoas individuais, fizerem a sua parte para amenizar os efeitos das alterações climáticas. Nado com a urgência da questão bailando nas falsas barbatanas dos meus pés.

Linan, a qawwi

Nota sobre este texto:

A Grande Barreira de Coral da Austrália, património mundial da UNESCO, sofreu um “colapso catastrófico” de corais durante uma vaga de calor em 2016, “uma ameaça à diversidade da vida marinha. Um terço dos corais de superfície da Grande Barreira morreu devido ao aumento das temperaturas. A Grande Barreira de Coral é o maior complexo de recifes de coral do mundo. Os recifes de coral representam menos de 1% do ambiente marinho da Terra, mas abrigam cerca de 2% da vida marinha. Se não se limitar a subida de temperatura estabelecido no Acordo de Paris “a Grande Barreira de Coral corre mesmo o risco de desaparecer” – In Diário de Notícias, 19 de Abril de 2018.

O que você acha sobre o tema? Deixe um comentário 🙂

 

Desabafo de uma qawwi

#3 | A síncope – o momento em que descobri que sou infiel

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Ao final de sexta-feira tive uma síncope. O beijo foi o gatilho, mas a causa maior residia no lento acumular de incongruências que estava a testemunhar nos últimos dias. Cheguei à terra faz pouco tempo, e quanto mais analiso, menos sentido encontro neste planeta. O uso excessivo de carros, por exemplo. É um paradoxo que escangalha-me o cérebro. Além de agravarem o sedentarismo, estas máquinas são altamente poluentes. Sempre ouvi dizer que a poluição inquieta os humanos. Pela quantidade de veículos que prolifera pelas estradas, eu diria que essa preocupação é tão grande como o dedão do meu pé de qawwi. Seria exagero concluir que os humanos são vítimas intencionais de si mesmos?

– Pára de reclamar, mãe! Hoje em dia não se faz nada sem um carro – explicou-me uma das minhas filhas. – além do mais, ter um bom carro é uma questão de status.

Status?

– Sim, mãe, status!

– Ah, status. – cocei a cabeça – Faz sentido.

Tinha que disfarçar, mas claro que não fazia sentido. No princípio, cheguei a pensar que o tal “status” fosse uma comida. É um conceito de difícil compreensão e na verdade, sigo sem entendê-lo. Será que significa vestir trapos feios, só porque são caros? Estar cercada de bens inúteis e sorrir como num outdoor terráqueo? Ou pior, costurar o rosto para mascarar as pegadas do tempo? Para mim isso tudo não passa de esquisitice. Ou então a minha inteligência qawwiana reduziu drasticamente com a viagem. Só pode.

– Mãe! O que se passa contigo? Nem pareces tu a falar! Sempre adoraste o teu mercedes e as plásticas que te rejuvenescem, qual é o problema agora?

A minha pretensa filha tinha razão. Mas ela não fazia ideia de que a figura diante de si não era a sua verdadeira mãe. Nem sequer era um ser humano. Era um ser alienígena, vindo de outro planeta, camuflado na mãe.

Para poder seguir a minha missão pela terra sem ser notada, principalmente depois da desastrosa aterragem em Maputo, teletransportei-me para dentro de um humano, em busca de um disfarce. Acabei assim no corpo e na identidade desta mulher. Nestes últimos dias, tenho sido esposa de um “empresário”, mãe de três “adolescentes”, “dona de casa”, com uma família cheia de “status”.

A minha filha lançou-me um olhar desdenhoso, pegou no telemóvel e foi perder-se pelas avenidas da cidade. Para quem nunca ouviu falar, o telemóvel é um dispositivo de comunicação que… não, esperem. Na verdade, o telemóvel é um órgão humano externo. Tão vital quanto os pulmões. Se quiserem causar um colapso à um humano, é só experimentarem arrancar-lhe o telemóvel. Difícil de imaginar, eu sei, mas já explico: enquanto no nosso planeta somos servidos pelas máquinas, aqui na terra elas é que são servidas pelos humanos. As máquinas escravizaram tanto os humanos, que até nos ritos sociais de confraternização, os humanos já não convivem. Apenas os telemóveis. Os humanos estão reduzidos à uma alarmante apatia. Mais recordam os zumbis do apocalipse tecnológico.

– Com licença, minha senhora – murmurou uma voz masculina, arrancando-me dos atribulados devaneios. Era o motorista lá de casa.

– Sim? Algum problema? – perguntei, vendo que o homem difundia aflitivamente a sua atenção para todos os cantos da luxuosa sala. Assim que percebeu que estávamos a sós, capturou-me e meteu os seus lábios carnívoros em cima dos meus. O meu peito trovejou de perplexidade e de nojo.

– Que raio está o senhor a fazer?

– Saudades tuas, meu docinho de coco.

– Docinho de coco? – a voz estava-me presa de pânico – eu sou casada, o senhor não sabe o que isso significa?!

– Ah meu docinho! Desde quando tal foi obstáculo para as nossas escapadelas? – Sussurrou com malícia, seus lábios feios e vingativos continuando a invadir a minha boca.

Foi nesse momento que me deu a síncope e perdi os sentidos, caindo no elegante tapete vermelho.

O planeta terra é um lugar cheio de regras. Uma delas, por exemplo, é que o casamento é um instituto sagrado, que obriga à estrita fidelidade entre duas pessoas. Talvez a dona deste corpo tenha um defeito de fabrico. Sim, é isso! Ela é um caso raro de avaria! Já imaginaram se de repente houvesse muitos humanos com uma disfunção assim? Não quero nem pensar.

@Linan