Desabafo de uma qawwi, Histórias

#21| Leva contigo o meu coração

Apesar da grandeza do Rio de Janeiro, consegui localizá-lo. Mais rápido do que previ. Rondava pelo telhado do prédio, quando finalmente vi o meu inimigo. Aterrei no pulo de um gato e comecei a disparar várias flechas contra ele. Os qawwis só perecem se atingidos no peito ou na cabeça. Todavia, o ferimento que causei, embora fosse cicatrizar automaticamente, servira para o neutralizar. Lancei bolhas de energia e de seguida atirei-me sobre o seu pescoço.

– Devolve a humana, agora!

Vallen grunhiu.

– Ai sim? Se não o quê? – Apesar de sufocada, a voz abafada daquele qawwi vil continuava eivada de afronta. Isso irritou-me e fez-me cercá-lo com muito mais força.

– Se não eu mato-te e vou sozinha atrás dela. Vou encontrá-la, Vallen, demore o que demorar.

Podia ser pelo facto de ter passado as últimas noites em claro. Ou então, por apenas há alguns dias, eu ter casado e perdido a família. Numa única noite. Mas a verdade é que eu tinha sede daquele confronto. Sentia a morte no ventre. E não duvidava que um de nós fosse sucumbir. Estava na hora.

Vallen fez um novo grunhido. Uma gargalhada confinada.

– Tu não me vais matar, Linan.

– Qual seria a razão para não o fazer?

– É simples – as suas veias pulsavam como um vulcão em erupção – matas-me e estarás também a matar a tua querida humaninha. A minha vida está atada à dela, minha cara, portanto, tudo o que fizeres comigo, será sentido por ela.

Imediatamente tirei o braço. Sabia que o que ele dissera era possível, e portanto, havia todas as chances de ser verdade.

– Ai minha doce Linan…- Vallen ajeitou a camisa e cruzou os braços – Pelo Rei Réon tu já terias sido permanentemente banida de Stefanotis. Eu trago autorização dele para extirpar-te dos teus poderes. Só não o fiz porque ainda tenho esperança em ti. Estou ao teu lado, Linan.

– Faz-me rir. Se tivesses o poder de extirpar-me, já o terias feito…

– Acontece que preciso de ti com os teus plenos poderes. Da-me o oitavo qlub.

– Não sei nada sobre o oitavo qlub. Ainda estou a meio da minha missão.

Vallen adquiriu um brilho nos olhos.

– Eu sei. Mas acredito nas tuas habilidades, Linan. Ajuda-me a encontrar o oitavo qlub, e eu dou a minha palavra que não rei extirpar-te. Se não me obedeceres, executo a decisão do rei Réon agora mesmo.

O meu sangue gelou. Ser extirpado significa perder a essência. É um dos piores castigos no meu planeta. E só Reon, qawwi supremo, podia aplicar tal medida. Um qawwi extirpado deixa de ter os seus dons, fica imune às doenças e não demora a envelhecer. Em outras palavras, torna-se humano. Algo que eu, nem sequer, conseguia cogitar. Então quais eram as minhas opções? Pôr-me em primeiro lugar e salvar-me? Ajudar Vallen na destruição do planeta terra? Era isso que eu devia fazer?

– Prefiro morrer a juntar-me à ti, Vallen.

O brilho nos seus olhos desapareceu e ele avançou.

Na rapidez de um cometa, senti-me mergulhar num buraco negro. Ia deixar de ser uma qawwi.

Então, subitamente, Vallen retrocedeu. Parecia admirado:

– Preferes mesmo ser extirpada, do que obedecer o rei Réon? De facto deves amar bastante essa tal humanidade. O que é que eles fizeram por ti? – o vinco na testa dele desapareceu e o sorriso jocoso regressou – mas seja feita a tua vontade, Linan. Lembra-te apenas de uma coisa: os teus poderes e dons vão desaparecer para sempre e tudo o que fizeste antes será anulado. Eu faço-te a vontade…

– Espera!

Ergui o braço em defesa. Percebi nesse instante que não estava preparada para tamanha crueldade. Não queria deixar de ser uma qawwi. Essa revelação pesou ainda mais, ao lembrar-me de que eu tinha usado os meus poderes para curar Will de uma doença fatal. Se os meus poderes desaparecessem, era provável que tudo voltasse ao estado original. Will podia morrer. Coisa normal neste mundo que eu tanto queria abraçar. No entanto, não era capaz.

– Eu faço o que queres, Vallen. Vou contigo procurar o oitavo qlub – ele rompeu num urro de vitória, que tratei de interromper. – mas tem uma condição: temos de devolver a menina ao pai.

– Trato feito, minha amiga! Devolvemos a menina, e seguimos a nossa viagem.

Pouco depois, estávamos em frente de casa. Vallen permitiu que me despedisse de Will. Entretanto ao vê-lo de longe, pelo vidro da varanda, não tive coragem de entrar. Will esperava ardentemente pelo nosso regresso. Eu sentia-o. Mas se chegasse perto, não teria força para abondona-lo.

Ajoelhei-me em frente de Érica e arranjei-lhe a gola do vestidinho. Até os canários do jardim percebiam a minha tristeza.

– Quero que corras para casa, minha filha. Vai dar um abraço ao pai.

– Mãe… tu não vens?

Olhei mais uma vez para a varanda envidraçada. Will ainda não tinha dado pela nossa presença. Afaguei o cabelo de Érica.

– Venho mais tarde – era a primeira vez que mentia para a minha filha – Diz ao pai que a mãe ama muito vocês, e vai amar para sempre. Sê uma boa menina.

– Está na hora de partirmos Linan. – advertiu Vallen.

Abracei Érica com muita força.

– Corre, vai dar um abraço ao pai!

Ela correu. E com ela levou o meu coração.

Vallen estendeu-me a mão. Era como se a gravidade e os astros se tivessem feito ausentes. Precisava de recuperar o equilíbrio, e agarrei-me ao apoio mais próximo. A mão de Vallen. Foi nesse instante que Will abriu a porta para Érica e viu-me. Poucos segundos antes de Vallen e eu desparecermos pela noite preta.

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