Reviravoltas do Universo

QAWWI – FANZINE DE FICÇÃO ESPECULATIVA – EDIÇÃO 1

Olá Tripulantes,

No ano passado anunciamos a abertura de submissões ao Diário de Uma Qawwi, com o intuito de partilhar com os leitores novas histórias. Esta a é primeira edição da Qawwi, uma fanzine eletrónica onde partilharemos histórias do fantástico e da ficção especulativa.

Nsta edição, apresentamos contos inéditos dos autores Adelino Albano Luís, Ana Charles e Bruno Areno. Eles nos trazem a fábula por detrás do surgimento de arco-íris, a história do Universo e a história de um homem que trocou o seu coração humano por um coração de papel.

Votos de boas leituras.

Um abraço interplanetário,

Virgília Ferrão

Diário de Uma Qawwi

Arcolino Pires

Quando as primeiras gotas timbilaram o chão da nossa aldeia, houve grande alvoroço.

― Está a “chover chuva” ― gritava-se.

As mamanas da aldeia, vestidas apenas de capulanas, saíram das palhotas carregadas de bilhas e seus corpos eram lindamente decalcados pela molha. Em suas bocas saíam as mais antigas e bonitas canções da nossa terra, numa alegria que pertence apenas às mulheres.

As crianças, sem roupa, corriam de um lado para o outro

― Chuva… Chuva… Chuva… ― Gritavam.

Os homens saudavam-se com calorosos abraços. Era o fim de uma espera que se fazia longa. Era o fim daquelas rezas silenciosas com olhares de súplica aos céus. Era o fim dos suspiros de triste esperança, de que

― Há-de vir… Está a procurar o caminho.

Porém, ao cabo de uma semana inteira de chuva que se fazia cada vez mais intensa, com suas trovoadas e relâmpagos que acendiam até o íntimo de cada um, os semblantes assumiram outras fisionomias.

― A água esqueceu-se de parar.

Sofremos tanto com a seca e, agora, é para sofrermos com a chuva?

Começaram a surgir relatos de palhotas, tão bem maticadas, destruídas pelas águas; Currais arrasados: os bois, tão donos de tamanhos, eram arrastados pela fúria das águas; E o pior

― O rio está vindo!

O rio, com a gula das águas, ambicionava outros tamanhos. Invadindo o interior das machambas, casas e o interior das pessoas, como se vasculhasse alguma coisa que lhe pertencia.

Todos nós saímos das nossas casas e fomo-nos abrigar na única casa da aldeia feita com blocos queimados. Dentro dela, no tempero do desespero, começaram a rolar teorias, afinal, em África as desgraças nunca vêm com os seus próprios pés. Havia, certamente, alguma ofensa contra os espíritos.

― Enterraram algum bebé sem cerimónia.

― As traições estão demais ― e acrescentou, ― muito sexo sem nexo.

― Alguém casou sem lobolo.

E muitas outras teorias foram aventadas. Nada poderia ser provado ou, até lá, já teríamos sido varridos pelas águas.

― Eu tenho a solução.

Quem? O louco? Quando até aos loucos é concedida palavra, é porque a situação é mesmo de desespero.

Todos olharam para ele como se portasse uma mensagem divina. Os olhos eram de renovada esperança, como se o facto de ter sido louco a vida inteira fosse para nos salvar daquelas águas e daquele rio que se aproximava. Não é verdade que todos os Messias do mundo sempre foram vistos como loucos? Por que com o Arcolino Pires seria diferente?

― Temos de varrer as águas. ― Disse, justificando assim a vassoura de palha que tinha nas mãos, até então ignorada por todos.

― Acho que lááááá nos comandos se descomandou. Precisamos varrer as águas e deixar alguém de guarda para isto não voltar a acontecer.

Falava com tal convicção que parecia uma solução óbvia. Mas só para ele. Para nós era claro: estávamos diante da nossa morte e ninguém nos poderia salvar.

Os olhares, desde as crianças aos velhos, transmitiam o mesmo medo, preocupação e desilusão. Afinal, toda morte é sempre prematura.

― Eu vou, verão o meu sinal nos céus. ― Era, uma vez mais, o Arcolino Pires.

Alguém, sem sucesso, tentou agarrá-lo para que não saísse da palhota onde nos havíamos acumulado. Era a casa mais bem construída da aldeia e seria a última a desabar.

Lá fora as chuvas continuaram intensas, com seus raios e trovoadas. Mais uma vez soou a frase:

― Sofremos tanto com a seca e, agora, vamos morrer com as águas.

Os velhos entreolhavam-se, tristonhos. Nem mesmo a lembrança dos tempos de estômagos e celeiros fartos, os podia consolar. Nesses tempos em que se bebia para celebrar a vida e se somava mulheres e mais mulheres, pois, naquela zona, isto era sinónimo de riqueza. Depois veio o tempo de seca severa. E as cerimónias sucederam-se: primeiro na pequena igreja de caniço deixada pelos missionários e, depois, nas sombras das árvores sagradas. Insatisfeitos com a demora da resposta, levamos os batuques, rezas e canções cerimoniais para o mais próximo possível dos ouvidos dos nossos antepassados: o cemitério tradicional. E lá a aguardente era quase um suborno: despejávamos umas gotas em cima das campas e dizíamos:

― Mandem chuva que nós damos mais nipa.

Tudo isto eram formas de namorá-los para ver se aceitavam enviar algumas gotas de chuva.

― Já nem precisam ser gordas… bastam que sejam gotinhas, meros pingos.

Desses que só servem para mostrar que ainda não se esqueceram de nós. Os céus, porém, respondiam com mais calor e, com ele, a fome e a miséria.

A seca foi tão severa que as pessoas desenterravam as sementes nas machambas, já murchas, para pôr nas panelas. Outros morreram por colocar na panela raízes incomestíveis, dessas que só são visíveis aos olhos da fome. É como diz o ditado: O que mata não engorda… ou será o contrário? Bom, eu…

― A água está ireeeee!…― Gritou alguém, para o silêncio dos que já se tinham adiantado para os choros.

Admirados, saímos da casa e tudo a volta tinha virado uma planície, pasto das águas. Mas é como diz Isaú Meneses, cantor largamente admirado naquela aldeia:

― Enquanto haver vida, há esperança[1].

Mas o que nos chamou mais a atenção foi o que estava pendurado nos céus, como se alguém, com uma grande vassoura, tivesse varrido as nuvens em formato de um arco com diversas cores. Era o sinal. Não havia dúvida:

― Foi obra de Arcolino Pires… Ele salvou-nos …disse que mandaria um sinal…

Gratos, saímos pelas aldeias vizinhas espalhando o feito do Arcolino Pires, o nosso salvador. E a informação voou.

Da boca do povo, porém, e com o tempo, Arcolino Pires começou a ser chamado de Arco-íris. Para nós não importa, desde que, após as chuvas, olhem para o sinal nos céus e saibam que tem alguém de guarda, cuidando de nós, impedindo que as águas nos devorem.


[1] Isaú Meneses, esperança. Álbum esperança. 1999.

Por Adelino Albano Luís

Adelino Albano Luís nasceu em 1998 em Chimoio. Licenciado em Filosofia pela UEM. É autor da obra ″Cronicontos da Cabeça do Velho″ (2022), prémio literário Calane da Silva ⁄ Alcance Editores (4ª edição- 2021). Conquistou o primeiro lugar do concurso de Crónicas da 1ª edição da Feira de Livros da Beira (2021); Conquistou o primeiro lugar do concurso literário Dia mundial da Língua Portuguesa: estórias pandémicas e foi finalista do prémio fundação Fernando Leite Couto (2022), com a obra Estórias trazidas pela Ventania. Participou em algumas antologias, com destaque para ″Espíritos Quânticos: uma jornada por histórias de África em ficção especulativa-Diário de uma Qawwi (2022) com o conto ″O Caçador de Elefantes″

O Mundo Distante em Nós

Quando a criação estava pronta, o SENHOR do Universo disse para a SUA companheira e seus descendentes imediatos: Façamos, agora, no planeta Terra, um Ser à nossa imagem e semelhança!

Como assim, o Homem não foi o primeiro a Ser criado por Deus? Já existiam outros planetas antes de Terra? Há quanto tempo?

Há mais de 40 milhões de anos o Arcanjo Miguel foi enviado à Lamúria para preparar o planeta Terra para um novo Ser que o habitaria, o Homem. Antes disso, Lamúria era somente habitada por seres hominídeos que nunca saíam das cavernas.

E onde andam esses hominídeos?

Ainda vivem nas cavernas. Mas, antes, deixe-me continuar a história.

O SENHOR do Universo vendo, através da SUA imaginação, que a VIDA para além dele seria fantástica, projectou, a partir da SUA mente, uma companheira para o seu lado oposto, de forma a complementá-lo. Tendo gostado dessa projecção, amou-a profundamente com o seu Espírito Puro e Invisível. Vendo que a VIDA dos dois era maravilhosa, o SENHOR enviou a SUA Centelha Divina para a SUA companheira, que concebeu o SEU UNIGÊNITO. ESTE possuía as mesmas caracteristicas dos seus progenitores.

Vendo ELES que o que criavam e projectavam através da sua mente era bom, decidiram projectar outros seres com espírito puro, que pudessem fazer companhia ao UNIGÊNITO, na nona dimensão.

Esses seres são aqueles que nós conhecemos como Anjos. Arcanjo Uriel, Gabriel, Miguel e Rafael são os mais conhecidos.

Mas existe, também, o Lúcifer, que dizem ser o Anjo mau!

Sim, é verdade, mas isso é assunto para outro dia. Hoje eu quero-me debruçar sobre o papel destes 4 anjos que mencionei,especificamente sobre o papel do Arcanjo Miguel.

Este anjo, além de ter um papel de liderança na protecção dos Portais Divinos, tem, também, o papel de liderança na criação e protecção dos novos mundos.

É por isso que a ele foi designada a tarefa de preparar o Planeta Terra para a recepção de um novo Ser: o Homem.

O Homem foi projectado nos céus e trazido para a Terra assim que o Arcanjo Miguel criou todas as condições para que o novo Ser nela habitasse.

Os pretinhos são os nossos ancestrais, eles foram os primeiros a viver em África. São os pais dos lemurianos. Os lemurianos eram homens belos, altos, atléticos e donos de uma inteligência sublime. Eles dominavam a tecnologia 5D e tinham a capacidade de se transmutar para diferentes formas físicas e de se deslocarem entre 2 dimensões diferentes ao mesmo tempo. Dominavam a matemática, a física quântica e a genética.

Depois de muitos milhões de anos transformando o planeta Terra naquilo que hoje é, eles começaram a ficar, por um lado, aborrecidos com a mesmice em que viviam e, por outro, arrogantes. Assim, começaram a desafiar as Leis Universais fazendo experimentos com outros seres humanos e não humanos através da manipulação genética.

Vendo que isso era desastroso para o projecto desenhado para o Homem, o SENHOR decidiu afundar a Lemúria depois de escolher uma família que, apesar de todos os poderes, nunca tinha agido contra as Leis Universais.

̶  Noé é a família?

̶  Ai como és esperto, sim! 

̶  Noé foi o escolhido, por isso, graças à sua boa índole, hoje existimos.

̶  Tenho a impressão de que nós e os lemurianos somos parentes.

̶  Por quê?  ̶  Quis saber, entre risos.

̶ Veja, como eles, somos inteligentes, ambiciosos, egocêntricos e gostamos de manipular geneticamente.

̶  Pois! É verdade e preocupante!

Depois da Lemúria veio a Atlantis. Depois da Atlantis veio a Amafrica, em que os índios, celtas, egípcios, maias, aborígenes viveram (e ainda vivem índios, egípcios e aborígenes).

̶  E os aborígenes são mesmo gente?

̶  Que pergunta! Claro que o são. Por que fazes essa pergunta?

̶ Porque num grande relatório que os ingleses fizeram para a rainha deles, eles afirmaram categoricamente que a Austrália era uma terra linda que parecia um paraíso. Com plantas lindas, animais exóticos e com uma paisagem como um conto de fadas, mas sem nenhum ser humano!

̶ Olha, é óbvio que esse relato não contou toda a verdade, pois os aborígenes são pessoas que ainda existem um pouco por toda a Austrália. Basta lá ires que os verás. É verdade que constituem cerca de 1.8% do total da população australiana, mas existem.

̶  E a Telos, será que existiu mesmo?

̶  Áh, a Telos…a telos não existiu, EXISTE.

̶  Existe? Como assim, como podes afirmar com tanta certeza? Se existe, onde ela está?

̶ Sim, a Telos existe, existe em todo lado, no mundo subterrâneo, debaixo de cada montanha com formato de animal, planta ou Homem.

̶  A sério? Então quer dizer que debaixo do Monte Mtuquê em Cuamba, da Cabeça do Velho em Chimoio, Ayers Rock na Austrália ou Montanhas Azuis em Montana está a Telos?

̶  Bingo!

̶  Uau! Então me explica, o que é a Telos?

̶  Lembra que te falei dos hominídeos?

̶  Sim.

̶  Pois, eles habitam a Telos, junto de seres angelicais, numa sociedade tão avançadaque a nossa mente humana, tal como a conhecemos, não consegue alcançar. Veja que nós ainda vivemos e concebemos o mundo na 3ª dimensão, mas a Telos já está na 5ª dimensão. Mesmo estando aqui no planeta Terra, os povos que lá habitam tem um sentido de cooperação e colaboração tão grande que nada falta a ninguém. Todos têm o que precisam, todos são felizes e vivem uma vida alegre, de riqueza e de prosperidade. Tudo baseado no AMOR incondicional e regidos por uma Lei e Ordem que agrada a todos.

̶  Deve ser o Paraíso.

̶  É sim, o Paraíso.

̶  Me conta mais avô, como fazemos para viver nesse paraíso?

̶  Ah menino isso é para ser contado na próxima roda à volta da fogueira… e só trazeres uma garrafa do melhor vinho tinto que há.

̶  Então esse é o acordo? Uma garrafa do melhor vinho tinto por uma história?

̶  É sim.

 ̶  Combinado!

̶  Combinado.

Por Ana Charles

Ana Francisco Charles, conhecida por Anita # Mai Nkulo nos meandros da família, adopta o cognome de Mai Patti, nome dado pela sua mãe desde pequena pela sua forma despreocupada de andar. Nasceu na Vila de Manica no ano de 1966. O seu gosto pelas letras vem desde a tenra idade de 4 anos quando no lugar de brincar com bonecas preferia ler livros como a colecção de aventuras de Anita e mais tarde romances de Corin Telado. Depois disso o seu gosto pela leitura só cresceu e estando no ensino secundário teve a oportunidade de escrever e publicar alguns poemas no Diário da Beira. Profissionalmente, é mais conhecida por Ana Charles, Médica Generalista com especialidade em Saúde Publica pela Universidade Eduardo Mondlane. Com Mestrado em Saúde Publica na área de Promoção para a Saúde pela Universidade de Queensland na Austrália. Adora viajar e fazer passeios longos na natureza. Fazer viagens internacionais principalmente para países onde o clima é seco e frio e interagir com povos e culturas diferentes é algo que a encanta muito. Aprecia paisagens montanhosas e a vida no campo. A ajuda ao próximo é algo que pratica com regularidade através de pequenos gestos como doações regulares a instituições de caridade como centro de apoio à velhice, igrejas ou centros de refugiados. Mãe de 5 filhos, Ana tem uma filha biológica e 4 enteados, avó de 3 meninas e 1 menino.

Coração de papelão

Nascera num país não apropriado. Não passava de um Zé ninguém. Sem estatuto social. Adalberto era uma grande aberração aos olhos de quem o via. Ninguém se dava ao trabalho de cumprimentá-lo. Seu problema: ser cauteloso demais. Talvez, demasiado amoroso, atencioso e paciente num mundo que era urgente. Na verdade, Adalberto era o único homem que nutria temor na cidade-sem-medo. Estudava o inimigo e conhecia as suas fraquezas.  E isso ia contra a lei daquela cidade. As pessoas da cidade-sem-medo não eram cautelosas.

Quando se recrutavam jovens para os campos de batalha, Adalberto era sempre ignorado.

— Precisamos de homens não inteligentes, mas sem medo, e tu, jovem, és a personificação do medo — Diziam em gargalhadas, todas a vez que o jovem homem se candidatava.

Numa dessas manhãs de recrutamento, Adalberto insistiu tanto que venceu. “Milagre”, pensou ele, deixando escapar um sorriso vitorioso. A sua velha mãe, que jamais sentira medo na vida, ficou felicíssima. Aqueles olhos que outrora se viram melancólicos, ganharam vida.

— Finalmente o meu filho perdera o medo, tornar-se-á comum, assim como nós — Dizia ela alegre enquanto os militares tiravam o jovem aos empurrões de dentro da sua casa. A mãe derramou nenhuma lágrima, afinal, não possuía medo algum, muito menos previa os possíveis riscos que o filho correria no campo de batalha. Estava Felicíssima, pois não mais seria a maior aberração entre as amigas. A velha saiu de casa gritando aos ventos: O meu filho finalmente perdeu o medo!

Depois de uma semana, um general bate à porta da velha, e ela fica pasma:

— O que significa isso?— pergunta endireitando os óculos, prestes a tombarem sobre o chão húmido.

— Sinto muito, Senhora— responde o general aborrecido. — Esse filho que a Senhora tem é um pau torto e torto morrerá. O temor sobre o seu Ser é tanto que passava horas a tentar estudar o inimigo— Fixou os olhos nos da velha e acresceu — Ele diz que é necessário estudar o inimigo para conhecer as suas fraquezas. Ele ainda disse que devemos ter medo, medo de perder a nossa nação, a nossa cultura, o nosso povo. Fique com ele.

O general empurra-o de volta para os braços da progenitora.

A velha ficou ali, perplexa, imóvel. Aqueles sentimentos ataram-lhe o corpo. Virou-se para o filho:

— Essa cabeça que não regula, não te vai ajudar. Ninguém te quer por perto. Mas também quem te iria querer? És muito cauteloso, fazes as coisas, pois fazes, mas só depois de muito ponderares. Tenha coragem, filho, faça-o de olhos fechados, Adalberto! — Dizia a velha— Aja por instinto, assim como os grandes animais ferozes.

Passado alguns dias, Adalberto sai a rua. Com os olhos presos no chão, escuta murmúrios e insultos ao vento. Afinal, jamais alguém tinha sido expulso do campo de batalha por medo. Muitos morriam. Nem metade deles voltava à casa. Exausto de semear os olhos sobre a terra, Adalberto ergueu o rosto. Mas, de imediato, encolheu-se, embaraçado. Não era medo dos falatórios do povo, mas sim do seu próprio coração. Encantara-se com a mulher diante de si. Estava apaixonado, ela acabara de roubar-lhe o coração.

Pensara em falar-lhe dos seus sentimentos naquele mesmo instante, mas preferiu aguardar e entender melhor o sentimento que o cativara.

Depois de semanas, vai ao encontro da mulher, exprime o seu interesse, mas ela desafia-o, dizendo que só o aceitará depois que perder o medo.

Cabisbaixo, Adalberto faz-se a rua, e quando decide erguer os olhos para contemplar a cidade que dele tem nojo, nota uma oficina. No interior, por detrás do balcão, está um idoso, de óculos com grandes lentes e mal de tossir.

— O que o senhor trouxe para que eu concerte?— questionou o velho, acendendo um cigarro.

— O meu coração.

— Ah!— exclamou o velho— Teria que o deixar comigo por alguns dias.

— Mas eu não posso viver sem um coração— respondeu Adalberto.

O velho direccionou-se para um armário alto e de lá tirou um coração de papel. Entregou-o a Adalberto, dizendo:

— Use-o enquanto conserto o seu.

— Funciona perfeitamente? É igual aos demais?

— É um coração de papel.

Da oficina, Adalberto saiu com um coração de papel novinho em folha. E já não era o mesmo. Dali em diante, passou a ser igual aos outros. Já não tinha interesse na mulher que vira na rua. Interessava-se por todas que via passar. Fora-se a cautela. Passara a ser violento. Metia-se em brigas nas ruas, roubava e ninguém o criticava. Afinal, era igual a todos.

Um dia passou em frente da oficina. Decidiu entrar.

— Deixei um coração aqui, há anos.

— Prontos, não se preocupe, lembro-me perfeitamente de si. — O homem retirou do armário um coração coberto por um pano branco.

— Consertou?

— Não. — Respondeu o velho ajeitando os óculos.

Adalberto sentou-se na poltrona da oficina e suspirou profundamente.

— O desconserto deve ser maior.

— Nunca vi em toda minha vida, um coração tão perfeito, tão completo feito este. Ele não requer um reparo — Explicou o velho estendendo-lhe o coração. Adalberto recusou-o.

— Para o senhor talvez seja perfeito, mas para mim e para a minha gente esse coração só traz decepções, desigualdades e prejuízos. Para o povo, o coração de papel, esse sim é perfeito.

Levanta-se da poltrona e diz:

— Gostou do coração? Fique com ele, eu ficarei com o de papel.

— Mas não existe, Senhor, coração tão perfeito quanto o seu!— Insistiu o idoso desesperado. Adalberto aproximou-se do velho, agarrou-lhe as mãos trémulas e disse:

— Já lhe disse: para este país, para esta gente, esse coração não está bom. Gostou? Fique com ele. O coração de papel, sim, é perfeito.

Por Bruno Marquês Areno

Bruno Marquês Areno, nascido em Nampula, é autor de “Fotografias Feitas à Letras” e co-autor de livros como “O Estrangeiro”; “Olhares Negros”; “Poesia Brasileira”; “Água”; “Poemas do Eu”; “Alma de Mar”, entre outros.

Cantinho da Qawwi

Um verso de (one verse by) Matilde Chabana

O chá

Servir-te-ei a mim

Dentro dos lençóis pecadores

Servir-te-ei o chá, a tosta, a fruta,

Só de calcinha

Não a tires, afasta-a com a poesia dos teus dedos,

Para tocares melhor essas húmidas palavras

The tea

I’ll serve myself to you

Within the sinful sheets

I’ll serve you the tea, the toast, the fruit,

In underwear only

Don’t take it off, pull it away with the rhyme of your fingers,

So that you can better touch these moist words

Poema de Matilde Chabana, in “O Perfume do Pecado”

Publicado pela Editora Kulera

Foto: Jornal Noticias
Cantinho da Qawwi

Um verso de (one verse by) Álvaro Taruma

Quadras Desconcertantes

[…Entrar para dentro deste poema é assassinar a pele

Fica-se órfão de qualquer coisa; de tacto

Como os cegos espiando o sol nos murais da solidão

Perde-se o rigor das palavras por dizer

Entrar no coração deste livro é descalçar os sentidos

Caminhamos como se de um mecanismo a óleo

Até onde já não cresce a planta dos pés

Há por aí distâncias que nenhuma geografia alcança

Escancarar a porta deste desejo é fechar a cortina ao silêncio

Pela manhã limpar os vestígios de um amor mal acabado

Abre-se o filme com a mesma arma do crime

E fecha-se com as mãos atravessadas à garganta…]

Disturbing rhymes

[…to enter this poem is to slaughter the skin

One is orphaned of anything; of a touch

Like the blind spying the sun on the murals of solitude

You lose the strictness of the unspoken words

To enter the heart of this book is to take off your senses

We walk as if through an oil mechanism

To where the sole of our feet no longer grows

There are distances out there that no geography can reach

To open the door of this desire is to close the curtain to silence

In the morning to rinse the traces of an unfinished love

You open the film with the same murder weapon

And close it with your hands across your throat….]

Poema de Álvaro Taruma, in “Recolher Obrigatório do Coração”

Publicado pela Alcance Editores

Foto: OPais
Cantinho da Qawwi, Lançamentos!

Um verso de (one verse by) David Bene & Mélio Tinga (Objecto Oblíquo)

Hoje é verão ou inverno?

Não há boca que responda. A mão tem cinco dedos, isso basta para que saibas que o mundo nunca foi redondo, que há homens que bebem de seu sangue enquanto emagreces a escrever o poema da tua vida.

Is it summer or winter today?

No lips can answer it. The hand has five fingers, that’s enough for you to know that the earth has never been round, there are men who drink their own blood while you slim down writing the poem of your life.

Texto de David Bene & Mélio Tinga, in “Objecto Oblíquo”

Publicado pela OitentaNoventa, brevemente nas Livrarias

Histórias

O Capricho das Borboletas, por Daniel da Costa

Depois do ciclone, o relógio da natureza é assaltado pelos demónios da lentidão e do desânimo. O pescador tem mais tempo para ruminar em silêncio o azar que lhe bateu à porta. Desde o nascer-do-sol ao baile das estrelas, ele abandona-se a um canto do seu vasto quintal, debaixo da única árvore que a fúria dos ventos não arrancou pelas raízes.

Liva foi cuspido para a depressão, uma espécie de varanda do suicídio. Num abrir e fechar de olhos escapou-se-lhe por entre os dedos o sentido da vida, uma vida inteira dedicada à mulher e às artes da pesca. E sem filhos.

A fúria dos ventos não só lhe roubou a esposa. Tirou-lhe o telhado da casa e a esperança que florescia na machamba. A maior parte das cabeças de gado foi devorada pela corrente do rio, com troncos disformes à mistura, umas tantas galinhas cafreais e incontáveis utensílios domésticos.

Agora não consegue tirar o olhar das borboletas que interpretam uma coreografia de cores divinas no seu quintal cercado de plantas espinhosas. As borboletas dão piruetas à volta das flores que teimam em espreguiçar-se com esplendor, exactamente no lugar onde antes o pescador gostava de conversar com a esposa.

Dentro do corpo, da sua alma e do pensamento, tudo continua a doer por inteiro. Ele parece ausente, numa pose de quem fumou soruma, proveniente do planalto. Se calhar, porque o passado lhe acena somente com duas bandeiras: a fiel companhia de um cão rafeiro e uma canoa cujo casco reclama um conserto de pequena monta.

Liva esboça o primeiro plano para evitar o naufrágio nas borboletas da nostalgia, indo pelo atalho mais fácil. De garrafa em punho, passa a encharcar-se de álcool, de domingo a domingo.

Isto, com um agravante. Nos quintais onde o pombe impera, abundam amigos ruidosamente solidários, dispostos a pagar ao pescador uma dúzia de copos do que quer que seja.

Com improvisados sopros de flauta feita de bambú, as sessões são animadas. É quase sempre num estado andrajoso que o pescador acaba por acertar com o portão de casa, auxiliado pelos extraordinários dotes do seu cão rafeiro.

Mesmo assim, Liva tenta subir a fasquia. Da bebida para as saias, vai só um metro. É o bêbado no seu melhor. Mas aí esbarra com a falta de dinheiro para se fazer rodear de mulheres, independentemente da categoria.

Espicaçados pela crise, os prostíbulos também reviram em alta o preço da oferta. O único serviço acessível destina-se a garotos com um pé na puberdade. São as matinées.

As prostitutas içam a capulana para que, num lampejo, os garotos consigam espreitar as suas partes íntimas, preferencialmente sem roupa interior. A partir desse fugaz golpe de vista, os garotos dão asas à imaginação, viajando excitados para bem longe do prostíbulo e da vigilância dos pais.

A dona do sítio não vai dar ao pescador o tratamento concedido aos garotos, mesmo sabendo que as suas finanças não gozam de boa saúde e que, desde a passagem do maldito ciclone, a sua virilidade segue a rota da desgraça.

Mas Liva pertence a uma casta com pouco mais de sessenta anos. Apesar dos constrangimentos sociais e biológicos, merece o respeito da dona do prostíbulo. Por isso, ela propõe um arranjo generoso. Excepcionalmente, o pescador pode frequentar a sua casa, fora das horas de expediente.

Tem direito a uma sessão de matinée, vamos lá dizer, reforçada. A partir da janela da casa de banho, está autorizado a contemplar as suas curvas, durante os banhos. Embora ela não possua a frescura de uma donzela, a oferta não lhe parece má. Para um leão velho, pensa o pescador, é sempre melhor do que nada.

Há, entretanto, um preço para o arranjo. Nesta vida, há sempre um preço a pagar. A troco desta investida essencialmente platónica, Liva deve entregar à dona do prostíbulo uma parte do peixe que capturar durante a faina.  

Selado o insólito acordo, o cão rafeiro passa a ser visto com frequência na varanda da generosa senhora, em dias fixos e à mesma hora. O quadrúpede denuncia o paradeiro de Liva que, nesta altura, já se tornou demasiado dependente dos remendos platónicos.

Os meses voam e, a pouco e pouco, ele consegue passar de simples cliente a amigo. É costume o tempo pregar partidas.

Podes vir almoçar comigo este domingo?

O pescador aceita o convite, agradecido. É a primeira vez que recebe um convite a sério, um convite de mulher, desde que o ciclone despenteou a sua vida, e o deixou na implacável dependência de álcool e das migalhas atiradas pela janela da casa-de-banho.

A muito custo, claro, conserva-se sóbrio. Na data marcada, Liva até sai de casa mais cedo do que o costume, a cantarolar uma letra popular, memorizada numa bebedeira qualquer. É um hino à felicidade.

Desce animadamente em direcção ao rio, atravessando um espesso nevoeiro que não o deixa ver um metro além do achatado nariz. O despertar dos pássaros encontra-o no meio do rio a verificar a eficácia das armadilhas.

Apanha dois peixes, enormes. Retira-lhes as vísceras e lava-os, de forma adequada. Escolhe o mais bonito para o almoço e destina o outro para a venda no cais. Liva arruma a canoa num lugar seguro e vai ao banho, necessariamente demorado.

É aí onde nota que o céu está repleto de borboletas. Intriga-o que, depois do banho, elas o sigam até à sua casa, recentemente reconstruída por voluntários de uma organização não-governamental.

Centenas de borboletas do rio juntam-se à dança entre as flores de casa. Boquiaberto, Liva contempla aquele invulgar espectáculo de cores em movimento.

Perto da hora agendada, mete-se por um caminho que bem conhece. Para não se atrasar, encurta a distância. Não vá o diabo tecê-las. A nuvem gigante de borboletas que o persegue deixa atónitos todos os adultos com os quais se cruza na rua. As crianças, maravilhadas. 

Sem que se aperceba, ao longo do trajecto, as suas rugas vão caindo, uma a uma. As mágoas e os cabelos brancos, também. Liva sente os passos a desenharem no chão pegadas mais firmes, a coluna a endireitar-se e o corpo a despir-se do vício e da fadiga.

Ainda cortejado pelas bailarinas de asas delicadas, o homem chega ao destino e bate à porta, suavemente.

Ao abri-la, a anfitriã fica pasmada. O quintal está deslumbrantemente colorido e o pescador untado pela frescura sedutora de um príncipe retirado de uma fábula.

O que é que se passa aqui, amigo? pergunta ela. 

Liva não consegue encontrar no dicionário palavras para lhe explicar aquele capricho da natureza. Limita-se a segurar o peixe numa mão, enquanto tenta, com a outra, acalmar o cão que, desde o rio, não pára de ladrar para as borboletas.

Nada voltou a ser como antes entre o pescador e a dona dos prazeres.

Conto da Antologia “Espíritos Quânticos”

Revisão por Leo Cote

@Todos os direitos reservados

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Desabafo de uma qawwi

#Inédito# Partículas de Tamarino

Narrado por Lindiwe

De vez em quando é preciso recuar, parar o ponteiro, por forma a fazer o relógio seguir. É o que sempre dizia o meu  avô. Hoje, a pressão de descontinuar, desandar, voltar a sentir, não é apenas esmagadora. É real.

– Então? Se pudesses revisitar alguma época, qual escolherias? – pergunta-me Linan.

Não titubeio.

– Maputo, anos 90, alvoroço das primeiras eleições multipartidárias, minha juventude, baixa da cidade, por favor.

– Ok, Lindiwe! Dá-me o braço. De resto, sabes o que fazer.

Respiro fundo. Estou curiosa para saber se de facto, estas tais partículas de lua verde de tamarino vão funcionar em mim, mera mortal. Medo. Este não me falta. Nem sequer razões. Linan foi muito específica quanto ao mecanismo desta sua tecnologia, porém, o meu intuito é desobedecer.

Seja como for, fecho os olhos, conecto-me ao aparelho e permito que ela esfregue no meu braço o pó prateado. Num instante, mergulho no escuro. E num clic, divido-me.

Sou duas dentro de mim. Sou ontem e amanhã. Estou sólida e gasosa, tanto quanto verde e madura. A minha pele rejuvenescida, as mirabas novinhas, as lágrimas nos olhos apertados, brilham no espelho do meu quarto de outrora. Mas a minha metade, a gémea nunca nascida, que mira a outra no espelho, já traz consigo as marcas e a confiança cobrada pelos anos. Tem características de uma mulher que amadureceu.

Limpo as lágrimas. Afinal de contas, elas pertencem à outra Lindiwe, a Lindiwe jovem, dos anos 90, que chorava por tudo e por nada. Que venerava o drama doce-amargo próprio da idade.

A melancólica “end of the road” chega ao fim e o gravador dispara. Teria de me inclinar sob a cómoda empoeirada, para virar a cassete para o lado B. Mas apenas me rio. A outra metade de mim já conhece a era digital. Desaprendeu a manusear fitas de cassete.

Um telefone em madeira e metal desperta no corredor. Trim trim. Parecem ecos medonhos que querem assombar. E o sentimento de pavor repete-se, no passado, no presente. Trim trim. Como dois consecutivos golpes na alma. Trim Trim.

Abro a porta, sabendo perfeitamente o que vai acontecer: o meu pai aproxima-se do telefone e levanta o auscultador:

– Alô! Sim? Quem quer falar? Fatinha está muito ocupada, não pode vir ao telefone. Aconselho a não telefonar mais!

O telefone tomba no gancho.

Trim trim.

– Olhe menina, já não lhe avisei para parar de telefonar? A Lindiwe não pode fazer mais parte do grupo. Não, não podes falar com ela, nem por três minutos, nem por três segundos! Certíssimo!

O telefone volta a tombar no gancho.

“Pai, por favor, a Ana apenas quer despedir-se, ela vai-se embora da cidade”.

Tu não vais manter amizade com essa moça, Lindiwe! E enquanto estiveres debaixo deste tecto, terás de obedecer-me!

Teria sido assim a conversa que se seguiria entre mim e o meu pai. Mas as palavras já não existem dentro de mim. Tenho pressa, preciso mudar o rumo dos cometas. Decido não enfrentar o meu pai
e deix-o afastar-se, com o corpo pejado de fortes convicções.

As memórias queimam na minha pele. Pois que naquela noite, eu ainda não sabia que um dia seria adulta, livre. Apenas conhecia o desespero. Apenas sabia-me presa aos desígnios de ter nascido
mulher. Ainda que Pedrito fosse mais novo, era ele quem dava as ordens. Não podia passear se ao mano mais novo não apetecesse acompanhar-me. Naquela altura eu era tida por um animal indomesticado, por gostar tanto de cuba libre, de sair com as amigas e de amanhecer a dançar.

O meu braço comicha, o efeito das partículas de tamarino está a terminar e o meu tempo de viagem a esgotar-se. O peito se me dilata.  Espreito pela janela do quarto. Lá está, o menino da barraca! Continua naquela praça, vendendo sonhos, amendoins e matoritori, entre as luzes intermitentes, no pulsar da noite que parece estar somente a acordar. Era sempre assim, especialmente às Sextas, quando o “tumbai” jorrava das colunas do minigolfe e sacudia as saias das moças que trepavam grades para irem às escondidas, abanar os corpos na famigerada boate.

O meu coração bate mais depressa. Não tarda para Inilda, Ana e Matilde estacionarem. Naquela noite, naquele exacto minuto, a outra Lindiwe estaria a vestir as suas boca de sino verdes, os
tacões favoritos, pintando os lábios de vermelho e metendo uns quantos quilos de audácia na bolsa, para mais uma aventura com as amigas. Não desta vez.

Ouço a buzina prolongada e reconheço o código.

Com o medo a escorrer-me pelos dedos da alma, avento-me no ar gelado e apresso-me ao carro. Ao contrário do que fiz no passado, detenho-me somente à janela.

– Meninas, devem todas voltar para casa, agora mesmo!

– Mas Lindiwe…

– É importante, Ana! Se formos à festa… uma de nós vai, vai…o resto da locução perde-se no vácuo dos meus próprios múrmuros.

Pasma, a minha amiga de outrora desce do carro.

– Isso tudo é por causa dos teus cotas? É a minha despedida, sabes que tão depressa não volto para Maputo, não sabes?

Ana não fazia a remota ideia. Nem poderia.

– É por querer ver-te bem, minha amiga! Tudo vai…

Não consigo completar a frase, pois o mundo esvanece numa neblina fresca, a medida em que os carros, o luar e a alegre cidade desaparecem num rodopio para dentro do impiedoso tempo. Os ponteiros seguem. Sonoros tic tac, tic tac, anunciando o meu presente. As pálpebras pesam quando abro os olhos. A minha blusa cola-se-me ao peito de tão encharcada. Pouco reconheço ao meu redor. Somente ela, Linan.

– Onde estamos?

– É a tua casa, Lindiwe. Como é que foi a viagem?

Percorro atabalhoadamente tudo em que esbarro, até encontrar um telemóvel. O meu.

– Linan! – balbucio vasculhando a vasta lista de contactos – acho que consegui! – já ouço o longínquo toque conectando o número de Ana. A voz do outro lado, que quase nada mudou nos últimos anos, confirma-me o impossível. Arranca-me sem freio uma lágrima.

– Ela está viva, Linan – anuncio – A Ana vive! O acidente não aconteceu! O meu passado é outro!

– Hey, calma ai – Linan parece estarrecida – eu disse-te para teres cuidado. Não é assim que as partículas funcionam… elas…

– Shiu, Linan! – enfio-me depressa num casacão grande – está tudo perfeito! Sou-te tão grata! Vamos sair, para comemorar?

Source Image: DigitalArtInspiration

Cantinho da Qawwi

Um conto de (a tale by) Mélio Tinga

“Era um miserável, um pobre apaixonado atrapalhado. Basmeu de Castro Luis nunca antes se vira controlado por um amor tão ardente. A moça pisava o chão com serenidade, a luz do sol transformava-a em flor agigantada no meio de tantas outras. Basmeu apaixonara-se ao vê-la passar repetidas vezes. Certa feita, viu-a passar de um vestido que lhe roçava os joelhos, viam-se as coxas lisas e claras com o ecoar leve do vento de final de tarde.”

“He was a miserable, poor fumbling lover. Basmeu de Castro Luis had never found himself dominated by such passionate love. The girl stepped coolly on the ground, the sunlight changing her into a giant flower among so many others. Basmeu had fallen in love with her when he saw her passing by, again and again. On one occasion, he saw her walk by in a dress that brushed her knees, her smooth, clear thighs visible with the light echo of the late afternoon wind.”

Passagem de “O Pobre e os seus amores”, conto de Mélio Tinga. Leia este e outros contos em “O Voo dos Fantasmas”,

                                                                Livro Publicado pela Ethale Publishing, 2018

Cantinho da Qawwi

Um verso de (one verse by) Melita Metsinha

Medo

Morrer de amor

Esse que não mata

Por quem matamos?

É fuga impedida

O voo sem horizonte.

Um sonho sem ti.

Fear

To die of love

That which does not kill

For whom do we kill?

Its a hindered flight

The flight with no horizon.

A dream without you.

Poema de Melita Matsinhe – In Ignição dos Sonhos

                                                                Livro publicado pela Fundação Fernando Leite Couto, 2017

Cantinho da Qawwi

Um verso de (one verse by) Pedro Pereira Lopes

3 (Coisas da vida) / 3 (things of life)

uma vida que desce ou folha que envelhece

um poema que flui ou rosto que sorri

um musical sem pernas ou golo celebrado

fotos velas campas ou vozes

árvores velhas com baloiços velozes

qualquer coisa que ateste

até de indevida forma

a essência sublime

das coisas da vida.

3 (things of life)

a life that descends or leaf that grows old

a poem that flows or a face that smiles

a musical lacking legs or a goal to be rejoiced

pictures candles graves or voices

old trees with swift swings

anything that attests

even in an unjustifiable way

the beautiful core

of the things of life

Poema de Pedro Pereira Lopes, in Mundo Blue

                                                                Livro Publicado pela Gala Gala Edições, 2020

Cantinho da Qawwi

Um verso de (one verse by) Álvaro Taruma

Há ainda sobre a luz

Palavras que não dizem

Feixes obscuros

Centelhas adormecidas

Mas luz,

Ao contrário,

O osso de que se veste o corpo

E sobe de entre os dedos

Ao encontro do papel claro

Onde a noite gravita

A noite grave

A noite grávida de silêncios e sombras

E mais nada

Luz em reflexo in-vertido

There is still over the light

Unspoken words

Unclear beams

Sleeping flickers

But light,

On the contrary,

The bone of which dresses the body

And rises from between the fingers

To meet the bright paper

Where the night gravitates

The grave night

The night gravid with silences and shadows

And nothing else

Reflection in light in-

Verted.

Poema de Álvaro Taruma – in Para uma Cartografia da Noite

                                                                Livro publicado pela Literatas, 2016