Desabafo de uma qawwi

#9|Eterna magia de natal: verdades secretas

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Linan, 

Um sorriso simpático, uma boa conversa de esquina, são coisas que abundam no nosso meio. Mas quando se trata de honestidade, a história é outra. A arte da sinceridade tornou-se cara nos dias de hoje.

Nesta carta, é tudo o que tenho para oferecer-te: honestidade.

Não sou um sem-abrigo, como deixei-te pensar que era. Sou apenas um homem impulsivo, que por breves instantes morreu por dentro e apartou-se das ilusões deste mundo. Um homem que só regressou a si, depois de ter-te conhecido.

Não sei exactamente o que impediu-me de dizer-te a verdade antes. Talvez a necessidade de sentir a fé que tinhas em mim enquanto pessoa. Sem bens materiais, sem grande utilidade. Apenas pessoa. Talvez porque precisava de voltar a acreditar na possibilidade da amizade, do amor, gratuitos.

Quando se perde tudo de uma vez como eu perdi, cai-se num vácuo sem fim. Eu tinha planos, tinha uma vida, uma companheira. Mas demorei a perceber que as traças da intolerância há muito haviam corroído aquela união. As diferenças, os insultos, eram só um pretexto. Lá no fundo, o que nos destruiu foi o facto de que eu não era capaz de realizar aquele desejo, dar um filho à minha companheira. E não existe nada pior para um homem do que viver confrontado por esta incapacidade. Todos os dias.

Julguei que a proposta que fiz fosse ser uma solução: adoptar a menina Érica. A papelada para formalizar o sonho estava quase tratada, mas o sonho dissolveu-se no dia em que Susana anunciou estar grávida de outro homem.

Levou tempo para reerguer-me do golpe.

No sábado em que conheci-te, Linan, tinha ido ao parque com os meus amigos fazer um “experimento social”. É o nosso passatempo favorito e temos milhares de seguidores. Disfarcei-me de sem abrigo, colocamos câmeras ocultas, e começamos a provocar as pessoas para filmarmos as suas reacções. Normalmente divertimo-nos bastante com estes experimentos. Mas naquele dia, tornei-me eu vítima da triste comédia. Fora exactamente naquela manhã, que recebera uns exames médicos confirmando a grave doença. A saúde, tão silenciosamente, também me havia abandonado. Ou seja, o buraco não tinha fim.

Os meus amigos foram-se embora, mas eu continuei ali, sentado, permitindo-me experimentar a miséria humana em toda a sua plenitude.

E então chegaste tu, Linan. Parecia que vinhas a navegar pelo sol, de propósito, apenas para recordar-me de como é bom sorrir. Vieste sem preconceitos, cheia de coragem. E avançaste para dentro de mim, sem pedir licença. Pelo tanto que gostaste de mim, Linan, não consigo medir o quanto eu gosto ti. És uma das poucas pessoas que faz-me não querer desistir. Perdoas-me e aceitas-me na tua vida, com todas estas falhas? Espero por ti na Avenida das Portas, logo na esquina. Vem ter comigo, pois quero estar perto de ti, nem que seja só mais uma vez. Se julgares que não o queres fazer, entenderei, sem problema. Mas espero, sinceramente, que aceites o convite.

 Will

Pelos portões do parque, mesmo acima dos baloiços que cortavam o ar fresco, via-se a tal Avenida das Portas. O peito trovejou-me arrítmico quando rasguei a carta em quatro pedaços e tomei a direcção oposta.

Não importava se ele deixava de ser ou não um sem-abrigo. O facto é que aquele humano vestira o coração nos dedos que escreveram as verdades mais secretas sobre o seu ser. Por muito que o quisesse ver, sentia-me ameaçada.

Como podia ser sua amiga, sem contar-lhe a minha própria verdade? Seria eu a qawwi que traria para a vida daquele frágil humano, a maior mentira do século? Ofereceria o oposto do que ele precisava?

Não, isso eu não ia fazer.

Subi o acentuado passeio e estava quase em casa, quando fui obrigada a reter o passo. Debaixo do reflexo de um satélite que clareava o céu nublado, aguardava-me uma figura masculina. Trazia rosas vermelhas sobre o capô de uma viatura.

A figura aproximou-se e tirou o capuz da cabeça.

– Pressenti que ias optar por não vir, Linan. Mas tinha de tentar.

Excepto a voz, tudo nele era estranho. A pele com aroma de iogurte de limão, o cabelo farto, os olhos amendoados. Engraçado… era a primeira vez que percebia alguma beleza, para não dizer bastante, nos traços de um rosto humano.

– Will?

– Sou eu.

Subitamente as palmas das minhas mãos humedeceram. Deu-me uma esquisita reacção no estômago. A princípio julguei que fosse a energia do satélite a interferir no meu corpo, mas depois percebi que não. Era o toque de Will. As suas mãos entrelaçadas às minhas, o ar morno dos seus lábios tão perto de mim, fizeram-me sentir dessincronizada. Os joelhos fraquejaram. Assustada, quis teletransportar-me para outro continente, mas como se tivesse percebido as minhas intenções, Will segurou-me e persistiu com delicadeza:

– Por favor. Não vás.

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