“Quais as probabilidades, e o que pode dar errado, numa súbita amizade entre uma extraterrestre e um sem abrigo?”
O banco do parquinho continuava vazio. Não soube o que pensar. Teria Wilson encontrado um lugar melhor? A ser este o caso, devia ter ficado contente. Porém, o sorriso que escapou dos meus lábios era trémulo como as acácias ao vento. Conheci Will numa noite de frustração. É verdade que continuo a ter a capacidade de teletransportar-me, que posso compelir a vontade humana. Mas raramente uso essas habilidades. Tal significa que cada minuto que passa sem que eu cumpra a missão, enfraquece-me e afasta-me da natureza qawwi.
Na noite em que fiz essa constatação, bati com a porta de casa e fui à esplanada perto comprar uma hunter’s dry. Esvaziei-a ali mesmo, encostada ao balcão. Pedi mais duas garrafas, um hambúrguer, e decidi ir ao parque. Foi lá onde encontrei Will, um jovem envelhecido pela amargura. Estava sentado num banco, enrolado num cobertor sujo, e tinha os pés desnudos ressequidos pelo frio. Apesar do seu olhar distante e escondido pelo gorro buído, eu conseguia notar a melancolia com que ele observava os outros. Aspirei as essências que pairavam ao seu redor: abandono, sonhos quebrados e algumas sobras de esperança. Essências inevitavelmente humanas. Essências que eu não estava a conseguir salvar.
Sorvi o conteúdo da garrafa de uma vez.
– Já percebo porque é que os humanos gostam disto – murmurei a meio de um arroto.
Will virou-se para mim espantado. A voz rouca discorreu-lhe trépida:
– Gostam de quê?
– Álcool. É uma boa maneira de afastar os problemas.
Folhas secas voavam pelo parquinho, quando Will comentou:
– Nada nesta vida é definitivo, senhorita. Talvez, e tão somente, a morte e o amor. Olhe para mim. Um dia saio desta situação. Quando a música para, há que se fazer a própria melodia.
Os meus lábios abriram-se, e Will, tão naturalmente acanhado, sorriu. Devem ter se seguido uns tantos disparatares da minha boca, pois pouco depois Will baixava o cobertor para libertar o calor causado pelas gargalhadas.
– Toma – ofereci-lhe uma bebida e reparti o hambúrguer. Will tinha ar faminto. Todavia, manteve-se quieto, como que apavorado pelo gesto.
– A senhorita não se incomoda?
– Porque me incomodaria?
Ele baixou o rosto.
– Estou sujo, cheiro a urina, sou um sem abrigo, senhorita.
– Isso não faz de ti menos humano. Aliás, devo dizer que até agora és dos humanos mais genuínos que conheci.
Para falar a verdade, eu nem sequer entendia aquela situação. No meu planeta era impossível qawwis deixarem outros qawwis à mercê do incerto e do desamparo. Todos têm um lar em Stefanotis. Ser “sem abrigo” lá, significa ter o coração vazio. E esse não parecia o caso de Will. Ao perceber que já haviam passado muitas horas e dúzias de cidras, pus-me em pé.
– Tenho de ir.
A voz de Will galgou inibida pelas minhas costas. Tirou o gorro da cabeça e torceu-o nervosamente entre os dedos, antes de perguntar-me:
– A senhorita passará por aqui um outro dia?
A resposta saiu antes mesmo que eu pudesse processá-la:
– Amanhã eu volto para jantar contigo.
– Senhorita Linan – tornou ele a chamar-me – a senhorita tem um coração de ouro. Se as noites fossem tão bonitas como a de hoje, eu dispensaria as manhãs.
Voltei para segurar a sua mão entre as minhas e reafirmei:
– Mas sem o dia, a noite perde o valor. Eu volto, meu querido Will.
E de facto, passei a visitá-lo com frequência, a mesma hora, no banco do parque. Era fácil ser humana ao lado dele.
Sentei-me no banco vazio e telefonei à Fatinha, a minha housemate.
– Passam 4 dias e ele não está aqui. Desapareceu e acho que já não volta!
– Ele quem, Linan?
– O meu amigo, o rapaz do parque.
– O sem tecto? Ah porra Linan, tens que ir à um psiquiatra!
– Psiquiatria? Porquê?
– Ainda perguntas? Tu realmente não vês o que aconteceu com esse coraçãozinho, pois não?
– Do que é que estás a falar?
– Tsk, tsk… vem para casa que conversaremos!
Desliguei o telemóvel e pousei a mão na madeira do banco. Foi então que acolheu-me uma súbita vontade de chorar. Por acaso as lágrimas mudariam aquele vazio? E porque é que tinha de entristecer-me assim, se Wilson não passava de um humano?
– Linan?
Apercebi-me tarde da repentina presença. Era uma das meninas que trabalhava na esplanada perto do parque.
– Sim?
– Trago uma carta para si.
– Carta?
– Exacto. Do moço que costuma estar aqui consigo. O engenheiro Wilson – esclareceu, antes de dar meia volta, deixando-me com o misterioso envelope na mão. Engenheiro Wilson?