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Meu chefe, meu pecado

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Autora: Karina Jamal

Edição: 2018

Real Design

 

 

 

 

O convite para o lançamento desta obra circulou muito nas redes sociais. Tanto, que acabou atraindo a nossa atenção, pese embora nunca tivéssemos ouvido falar da autora. Para começar, gostaríamos de dar os parabens a Karina Jamal, por escolher, entre tantos hobbies e desafios, este que é dos mais exigentes e só persiste por genuína paixão: a escrita. Felicitamos a autora não só por escrever, mas também pela coragem de lançar a obra de forma independente, num mercado editorial de natureza complexo (mas também, o que é que não é complexo?). Para nós do diário de uma qawwi, todos que trilham por este caminho merecem a nossa atenção e admiração.

Com relação ao livro: o romance é ambientado em Maputo e traz a história de uma jovem secretária que apaixona-se pelo chefe e envolve-se com este, num relacionamento secreto e um pouco, digamos, desiquilibrado. O título, típico das fan fictions abundantes no Wattpad e outras plataformas do género, já dava esses indícios. Por falar em fan fiction, é mesmo essa impressão que dá meu chefe meu pecado: de estar na trilha de 50 sombras de Grey. Não lemos o Grey. Mas sabemos que a legião de fãs discute alguns valores morais na referida obra. De igual forma, nós também questionamos a protagonista que Karina oferece, a qual desconstrói a noção de independência emocional da mulher. Ou do ser humano no geral, se assim quiserem. Por outro lado, encontramos no par da protagonista, um protótipo cada vez mais típico na sociedade masculina, pelo que, é um tipo de personagem facilmente de reconhecer entre nós. Seja como for, há muitos apreciadores deste gênero, razão pela qual, esta obra, poderia, por ventura, encontrar um apreciável nicho no mercado.

Todavia, não é só de história que vive a narrativa. Se a autora trouxe uma história de pecados no ofício, nesta resenha gostaríamos de falar de alguns pecados na escrita.

O mercado editorial de hoje tem outra face. Aspirantes a escritores já não precisam de levar com portas na cara, de editoras que só apostam em autores que enquadram-se nas suas directrizes. A possibilidade da auto publicação nunca esteve tão mais disponível quanto na actualidade. Grandes autores, como John Grisham, por exemplo, começaram assim a sua carreira.

É certo, porém, que o escritor que sai pela chancela de uma editora tem mais ajuda e facilidade para fazer chegar um maior número de obras ao público, e consequentemente, estar mais propenso a atingir o sucesso. O que não significa que um autor independente não possa igualar.

O que há então de comum entre estes escritores? Ambos seguem algumas regras básicas. Leitura como ferramenta de trabalho diária, e revisão na construção do texto. Por melhor que o escritor seja, é aconselhável solicitar, sempre, a revisão de um terceiro. Reparem que, mesmo após muita revisão, escapa sempre um ou outro erro. Que dirá na total ausência? A autora de meu chefe meu pecado, desculpou-se na nota, pelos eventuais erros de revisão, visto que ela própria encarregou-se desta actividade. Efectivamente, os olhos de um escritor estão tão habituados à sua obra, que não detectam as falhas, as quais podem, por fim, comprometer bastante a leitura.

A capa é sugestiva, mas a diagramação e a paginação podiam ser melhores. Fora isto, temos fé que a manter-se a paixão de Karina, e se ela aplicar melhor as ferramentas apropriadas, poderá vir a contribuir para este género no mercado editorial.

Desabafo de uma qawwi

#6| Negaton – Acidente Tecnológico

3 mins de leitura

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Lá se vão quase dois anos desde que cheguei ao planeta terra. Desespero-me por ainda não ter conseguido cumprir a minha missão, mas já estou mais acostumada. Capacitei-me na arte mágica de transformar cebolas em caril. Aprendi a fazer refeições diárias, a dar valor ao dinheiro, pese embora o abomine. Porém, continuo sem perceber a natureza do ser humano: é luz ou é treva? Perversidade ou amor? Inconciliável hibridez. Assim parece ser o ser humano.

Por bem da minha missão, decidi evitar ao máximo contacto com eles, mas julgo estar a falhar tal desiderato. A verdade é que cada vez mais fascino-me por esta espécie. Até fui acometida por alguns dos seus hábitos: passo muitas noites a dormir, e pelas manhãs bebo café, enquanto leio o jornal. É vergonhoso confessar, mas adoro o café. Quanto ao jornal, só o faço por necessidade. Há que procurar pistas da minha missão. O que incomoda-me é a moribunda e inglória tecnologia de imagem estática.

Estava eu sentada na esplanada dos tolos, à espera de um galão, quando li a notícia. Os meus lábios secaram. Será que eu tinha dado o tiro? Causei tamanha tragédia? Conheci a Gabriela naquela esplanada. Uma mulher simpática e apressada. De vez em quando esticávamos conversa e lembro-me perfeitamente do dia em que ela, cabisbaixa, contou-me o sucedido:

– Fui demitida Linan, estou desempregada.

Vale ressaltar que fiquei com pena. É que o assunto de emprego é muito sério para os humanos. É o sustento do seu dia a dia.

– Lamento, Gabi.

– Se eu pudesse mostrar aos meus chefes – Gabriela limpava uma lágrima sorrateira – se tivesse uma câmera naquele dia e filmado o que aconteceu, eles iam pedir-me desculpa!

Pobres humanos… ainda dependiam das lentes de câmeras fotográficas para registar as suas memórias. Comovida, abri a minha sacola e procurei a salvação para o problema de Gabriela: Negaton. Tecnologia do meu planeta que permite registar memórias a partir do próprio cérebro. Bastava unir o dedo indicador à lente, para começar a gravar. Ou então invocar recordações do passado e tudo transferia-se para o mundo exterior, em formato físico.

– Funciona de verdade?

– Certamente.

Numa assustadora inércia, Gabriela apenas lançara-me um olhar de desdém.

– É mentira! Se tivesses uma tecnologia capaz disso, estarias a vender e não a oferecer-me!

Contive uma risada. Toda a tecnologia que existe no meu planeta tem o único propósito de optimizar os qawwis. Nada mais. Nós não comercializamos o conhecimento. Mas tal parecia difícil de ser compreendido pela Gabriela.

– Quero apenas ajudar-te Gabi, és uma boa pessoa. Usa o negaton para resgatar a tua dignidade e o teu emprego. Mas guarda segredo! Não mostres a ninguém, e muito menos digas quem é que to deu!

Dias depois, Gabriela telefonara-me a agradecer. Experimentara o negaton, conseguira extrair do cérebro as suas memórias, e pôde exibi-las em formato de vídeo. Resultado: recuperara o emprego. A partir desse momento não parei de receber novidades. Gabriela clamava que negaton havia revolucionado a sua vida. Podia reviver quanto quisesse as suas recordações mais preciosas. Perder um churrasco na casa da sogra ou uma festa na escola dos filhos já não era um problema. Usava o negaton no marido e nos filhos. Fotos e filmagens no celular? Tudo ultrapassado. Com negaton, o cérebro passara a ser a câmera fotográfica. Até de madrugada, Gabriela telefonava.

– Linan, amigaaa!! Porque é que estás a perder tempo? Com esta tecnologia podias ficar rica, andar num BMW e não a pé! Negaton é a melhor coisa da vida! Porquê esconder?!

O incontrolável êxtase fez-me perceber que Gabriela estava a fazer uso excessivo daquela tecnologia. Aliás, quando deixei de receber notícias suas, devia ter desconfiado que algo descarrilara. Agora estava tudo explicado:

Jornal o Besteiral

Insólito: homem dispara contra a esposa por causa de um filme

O caso ocorreu na madrugada de segunda-feira. Os vizinhos relatam que o agressor, Mário dos Galhos, já revelava um comportamento bastante possessivo com relação a esposa. A vítima Gabriela das Inocências, 35 anos, foi baleada pelo marido que a surpreendeu a assistir um filme o qual, segundo ele, era prova de infidelidade da esposa. O agressor diz que foi incapaz de controlar o acesso de ciúmes, já que a esposa estava a reviver memórias com outro homem do passado, gravadas através de um dispositivo chamado Negaton, tecnologia de ponta com a capacidade de reproduzir memórias humanas. “Errei, sim senhor, mas não nasci para ser chifrudo” – desabafou o autor do crime. As autoridades estão agora a investigar a veracidade dos factos, a possível existência de uma tal tecnologia nestes moldes e a respectiva origem.

 Respirei fundo e fechei o jornal. Foi então que dois polícias entraram na esplanada. Visto que o meu radar de qawwi avisou que eles vinham atrás de mim, juntei os braços em frente ao corpo e teletransportei-me para outro lugar. Os humanos não estão prontos para isto.

Linan

(Inspirado na série black mirror)